O certificado de cronômetro
Texto por Flávio Maia
John Harrison e o problema da longitude
Do equador ao pólo norte existem 90 paralelos, e outros tantos no hemisfério sul. Permitem medir a latitude, que vai de 0 graus no equador a 90 graus nos pólos. As linhas imaginárias traçadas sobre a Terra unindo os pólos constituem os meridianos e servem para medir a longitude.
A averiguação da latitude já era possível há vários séculos, através da determinação da altura do Sol, duração do dia ou pelas estrelas do céu. A longitude, porém, facilmente calculada nos dias atuais utilizando-se um aparelho de GPS, constituía o maior desafio científico do século XVIII.
Numa viagem marítima, sabia-se que se um relógio fosse ajustado de acordo com a hora do local de partida, seria possível determinar a longitude. Isto porque a Terra leva 24 horas para dar um giro de 360 graus, de modo que cada hora de diferença entre a hora local (obtida através do Sol) e hora do local de partida significam 15 graus de longitude.
No século XVIII, no entanto, não existiam relógios que marcassem a passagem do tempo com extrema precisão.
Os navegadores que realizavam as rotas mercantis daquele século, portanto, dependiam principalmente da sorte para alcançar seus destinos.
Após um naufrágio de grandes proporções, o parlamento britânico ofereceu um prêmio de 20.000 libras (atualmente equivalente a 12 milhões de dólares) a quem concebesse um método para determinação da longitude numa viagem da Inglaterra às Índias Ocidentais, com exatidão de meio grau. Isto, convertido para dimensões temporais, significava que qualquer relógio a ser utilizado nos cálculos não poderia sofrer uma variação superior a 3 segundos ao dia.
John Harrison, carpinteiro e relojoeiro autodidata, projetou então uma série de relógios com o intuito de ganhar o prêmio. Após 40 anos de intensas pesquisas, seu quarto modelo construído, denominado H4, alcançou sucesso. Estava criado o primeiro cronômetro.
É importante ressaltar que as palavras cronômetro e cronógrafo, embora freqüentemente usadas como sinônimos, possuem significado diverso. A primeira indica um relógio extremamente preciso; a última, um relógio para registrar o tempo decorrido entre dois eventos.
Os testes de cronômetros
A contribuição de Harrison para a navegação não foi prontamente sentida. O movimento do H4 era extremamente complexo e praticamente impossível de ser reproduzido em série. Só com o aperfeiçoamento da relojoaria foi possível a produção de cronômetros em larga escala. Os ingleses, então, visando adquirir os melhores cronômetros para a Marinha Real, passaram a testar diversos modelos no Observatório de Greenwich.
Os suíços, segundo o exemplo britânico, também começaram a testar seus mecanismos em vários órgãos exclusivamente criados para este fim. Estes foram centralizados em 1973, passando a se chamar COSC (Contrôle Officiel Suísse des Chronomètres).
Como são realizados os testes atuais
Um relógio nada mais é do que um mecanismo envolto por uma caixa protetora. O COSC, portanto, testa apenas movimentos, não o relógio completo.
Os movimentos mecânicos são muito sensíveis a variações de temperatura e posição. O COSC, então, testa cada movimento durante 15 dias consecutivos, submetendo-os a diferentes posições e temperaturas. Todas as alterações na precisão são anotadas e comparadas a uma norma padrão para testes de cronômetro. Atualmente, quando testados, os movimentos devem apresentar o seguinte comportamento para serem classificados como cronômetros:
1) A variação diária média em cada posição não pode representar um atraso superior a 4 segundos ou um adiantamento maior do que 6 segundos. O COSC calcula isto subtraindo a hora indicada pelo movimento 24 horas antes, da hora indicada no dia da observação;
2) A média de todas as variações observadas durante 10 dias de testes não deve ser superior a 2 segundos;
3) A maior variação entre as diversas posições testadas não pode ser superior a 5 segundos;
4) A diferença entre as médias das posições horizontais e verticais não pode significar um atraso de 6 segundos ou adiantamento de 8 segundos;
5) A diferença entre a maior variação num dia e a variação diária média não pode ser superior a 10 segundos;
6) Não pode ocorrer um atraso ou adiantamento superior a 0,6 segundos por cada grau centígrado de variação na temperatura dos testes;
7) Em cada ciclo de 5 dias de testes, não pode ocorrer uma variação média superior a 5 segundos de atraso ou adiantamento (isto é obtido comparando-se as variações do primeiro e último dia de testes).
O certificado de cronômetro é garantia de precisão?
Diversos leitores devem estar se perguntando porque seus relógios, não obstante a classificação como cronômetros, não se comportam de acordo com os parâmetros descritos acima.
Os testes do COSC simulam as condições aproximadas a que o relógio será submetido quando em uso. Isto não quer dizer, porém, que o relógio irá se comportar do mesmo modo.
Uma pessoa que tenha tendência a manter seu pulso em apenas uma posição durante do dia (um digitador, por exemplo), fará com que seu relógio regularmente acumule todos os erros relativos àquela posição. A precisão do relógio só é alcançada através do fenômeno da "compensação de erros".
Imaginem um relógio que, colocado numa única posição durante o dia, adiante 2 segundos, e, no dia seguinte, em outra posição, atrase 2 segundos. No terceiro dia, este relógio não possuirá variação alguma. O mesmo raciocínio pode ser aplicado às alterações de temperatura. E a "compensação de erros", numa pessoa relativamente ativa, acontece centenas de vezes ao dia.
Observa-se, portanto, que a marcha diária de um relógio mecânico depende fundamentalmente dos hábitos do seu usuário. Cada modelo interage com seu dono de uma forma bastante peculiar, sendo impossível prever de que modo isto irá influenciar sua performance.
O certificado de precisão expedido pelo COSC, além disso, refere-se a testes realizados num dado momento. Ninguém pode assegurar o que acontecerá com a precisão do movimento ao ser colocado na caixa do relógio, embalado e despachado para as lojas.
É apenas provável que o relógio apresente uma excelente precisão, conforme atestado pelo COSC.
O certificado de cronômetro, portanto, não é garantia de perfeita precisão. De qualquer modo, indica o extremo cuidado da fábrica no ajuste e construção do movimento. Isso, por si só, já é uma grande vantagem.
Observatório de Greenwich Narra o problema da longitude e a solução encontrada por John Harrison.
Fotografia do planeta Terra por Revista do Explorador; H4 por National Maritime Museum; certificado de cronômetro por Waldan International; Ulysse Nardin Marine Chronometer 1846 por Michael Disher.