La Chaux-de-Fonds: patrimônio cultural da
humanidade
Flávio Maia, julho de 2010
O protestantismo e Genebra
No início do século XVI, iniciou-se uma grande discussão
teológica
sobre os fundamentos da Igreja Católica.
Há algum tempo essa vinha
permitindo que pessoas doassem dinheiro com intuito de obter perdão
e, consequentemente, assegurar sua entrada no "Reino dos Céus".
A Igreja, assim, reuniu grupos de cobradores profissionais com o fim de
vender indulgências. Desse modo, negava-se perdão aos
pobres, que não tinham dinheiro suficiente para comprá-las.
No dia 31 de outubro de 1517, na véspera do Dia de Todos os Santos, o
sacerdote do norte da Alemanha chamado Martinho Lutero afixou seus
protestos quanto à venda de indulgências na porta da igreja
do Castelo de Wittenberg.
O documento - chamado de "95 teses" - pretendia incitar uma ampla
discussão sobre as indulgências e condenava os desvios morais da Igreja
Católica.
Nas palavras de Geoffrey Blainey, a intenção de Lutero ficou bastante
clara para aqueles que leram o manifesto: "por que os crentes deveriam
ser penitentes, quando alguns vendedores ambulantes tentavam isentar as
pessoas da necessidade de arrependimento em troca de algumas moedas?"
A recente invenção da imprensa permitiu que tais teses fossem copiadas e
difundidas por toda a Europa. Lutero traduziu a Bíblia para o alemão e
passou a defender o fim do monopólio da Igreja Católica sobre as
Escrituras. Em pouco tempo várias Bíblias foram impressas e tornaram-se
acessíveis a um sem número de pessoas.
Lutero não acreditava em ricas procissões, no poder de liderança do
padre e na intermediação de santos para alcançar o Divino. Qualquer
pessoa que lesse a Bíblia com fé podia alcançar o perdão. Lutero dizia
que a "salvação estava não em fazer o bem, mas numa fé simples e
abnegada em Deus".
Os países tais quais conhecemos atualmente não existiam. Havia reinos
unidos pela língua e a adoção ou não dos ideais protestantes dependia
basicamente da vontade do governante. Já em 1533, com o crescimento do
protestantismo na Europa, o Papa Clemente VII passou a
pressionar o rei da França para que procedesse à "aniquilação da
heresia Luterana e de outras seitas que ganham influência nesse reino".
Em 1534, vários cartazes foram afixados em Paris por protestantes,
criticando o modo como a missa era realizada pela Igreja Católica. A
reação do rei Francisco I da França foi brutal: passou a perseguir os
protestantes como hereges e queimá-los.
João Calvino (foto ao lado), protestante nascido no norte da França e
educado em
Paris, não esperou o pior: fugiu para Genebra que, naquela época, era
uma República que via com bons olhos a reforma da Igreja.
A partir de 1550, Genebra passou por uma fase de grande crescimento
demográfico ocasionado pela fuga dos protestantes franceses, com
consequente expansão econômica.
Não estamos a afirmar que entre os protestantes houvesse um maior
número de pessoas com melhor educação e tino para as artes e comércio.
Na verdade, uma pessoa não tão independente poderia abandonar suas
convicções religiosas e simplesmente permanecer residindo em sua terra
natal. Não seria perseguida como herege. Os
indivíduos, no entanto, que possuiam força de vontade suficiente para
manter suas convicções religiosas e, por isso, alteravam todo o curso de
sua vida ao abandonar suas raízes normalmente tinham o caráter
empreendedor introjetado em seu
espírito.
A relação entre o protestantismo e o crescimento econômico foi analisada
à exaustão por Max Weber na obra "A ética protestante e o espírito do
capitalismo", cujo aprofundamento foge ao escopo do singelo ensaio.
Basta dizer, porém, que segundo Max Weber, os ideais protestantes
tiveram grande impacto no crescimento econômico da Europa e,
principalmente, dos Estados Unidos da América.
Particulamente em Genebra, o crescimento econômico, sobretudo
propiciado pela nascente "indústria" relojoeira, pode ser explicado por
outro fato: os ideais protestantes não permitiam o enaltecimento do
luxo. Joalheiros e ourives, assim, passaram a fabricar relógios ao
invés de objetos para simples deleite. Afinal, segundo a ética
protestante, o relógio era visto como algo útil.
No final do século XVI já havia relojoeiros em Genebra em número
suficiente para criação de uma corporação de ofício, o que foi feito.
O Jura e o sistema de etablissage
Como ressaltamos no texto "The Worshipful Company of Clockmakers", "com o rápido
crescimento das cidades e, consequentemente, do comércio,
surgiu intensa concorrência entre os diversos artesãos.
Apareceram, então, as corporações de ofício,
reuniões de artesãos dentro do mesmo ramo, com fim
nitidamente protecionista. Organizados em uma corporação,
os artesãos melhor defendiam seus interesses perante as
autoridades. Ademais, determinavam a qualidade, quantidade e preço
dos produtos, bem como o número de mestres existentes numa
cidade, de modo a reduzir a concorrência. Finalmente,
regulamentaram a divisão de trabalho interna da oficina, que
meramente reproduziu o que anteriormente já ocorria.
O rígido
controle de qualidade imposto pelas corporações
assegurava a produção de relógios excelentes. Em
contrapartida, implicava em conservadorismo. Finalmente, havia
limitações quanto ao número de companheiros que
podiam ser mestres, tornando seus membros poucos ambiciosos.
É fato, porém,
que nem sempre as corporações de ofício
conseguiam impor suas regras, pois somente atuavam dentro dos limites
da cidade. Relojoeiros e comerciantes podiam, portanto, trabalhar
fora da cidade sem serem molestados. No interior da cidade, por sua
vez, tornou-se cada vez maior o número de mestres e
companheiros que adquiriam relógios de terceiros para suprir a
demanda. O contrabando de relógios seguramente era uma
atividade muito lucrativa..."
O controle da guilda de Genebra, pois, começou a ser burlado pelos
próprios artesãos, em virtude da lei da oferta e procura. A corporação
não tinha como evitar contratações de pessoas fora da República.
Poucas pessoas fixavam residência no Jura suíço, em virtude do inverno
rigoroso, cujas nevascas fechavam todas as estradas e
traziam bastante solidão. A terra também era ruim, propícia apenas para
a criação de gado.
Os criadores de gado, com a chegada do inverno, recolhiam-se às suas
residências e buscavam outros afazeres com o intuito de aumentar a
renda familiar. A fabricação de rendas pelas mulheres e crianças era a
tarefa preferida.
Os genebrinos perceberam a existência dessas pessoas pobres e sem
trabalho adequado durante o inverno e rapidamente as arregimentaram
para o serviço relojoeiro. Ressalte-se, ademais, que nas famílias do
Jura, todos podiam ser utilizados, principalmente crianças e
mulheres, com suas mãos pequenas e não marcadas por calos, ideais para
a construção das diminutas peças existentes em um relógio.
No início do século XVIII, pois, surgiu uma incipiente indústria nas
montanhas suíças que faziam fronteira com a França. Inicialmente, os
genebrinos relegaram aos fazendeiros a parte "suja" e de pouca
remuneração da produção dos relógios. De
qualquer modo, os valores auferidos por essas pessoas era muito maior
do que a produção de renda ou criação de gado. Em algum tempo, famílias
inteiras estavam envolvidas na cadeia de produção de relógios,
relegando ao segundo plano seus afazeres tradicionais.
Na divisão de trabalho criada, competia aos habitantes do Jura a
construção das peças simples do relógio. O projeto, acabamento e
montagem das peças era feito em Genebra pelos mestres relojoeiros.
Nessa cadeia, havia a figura do comerciante de peças, que fazia o
contato entre os mestres e os "fazendeiros" que
as construíam. Esse sistema tornou-se conhecido como etablissage e
sempre marcou a indústria da Suíça, mesmo após a criação das grandes
fábricas de relógios.
Como ressaltado por David Landes na obra "Revolution in Time", nem mesmo
a secular fabricação de renda resistiu à imperialista indústria
relojoeira. "A relojoaria pagava mais; melhor, propiciava emprego para
toda a família, já que a fabricação de rendas era vista como uma
ocupação feminina".
Em toda indústria, inclusive as atuais, no entanto, a fabricação dos
bens é baseada em modismos. Os trabalhadores do Jura, portanto,
inicialmente copiavam modelos ingleses e franceses: afinal, o mercado
exigia relógios nos padrões desses locais. Ressalte-se, também, que
integrados a uma cadeia de produção comandada por terceiros, os
habitantes do Jura nunca haviam se especializado a ponto de conseguir
projetar as peças do relógio, sobretudo seu movimento (o mecanismo
completo do relógio que, sem acabamento, é conhecido por ébauche).
Um caminho sem volta, porém, estava traçado. As pequenas oficinas que
apenas trabalhavam de forma independente dentro de uma cadeia de
produção se tornaram maiores e estavam aptas a competir de igual para
igual com Genebra.
Nessa época surgiu a lenda - eis que não existem documentos históricos
confiáveis - de Daniel Jean Richard (foto abaixo), a figura do
relojoeiro
independente que se tornou mestre em todas as áreas da relojoaria e
difundiu seus conhecimentos entre os habitantes das montanhas de
Neuchâtel.
De acordo com Hélène Pasquier, ao citar Fréderic-Samuel Ostervald,
"durante sua juventude, Daniel Jean Richard adquiriu técnicas básicas
de relojoaria imitando e incorporando conhecimentos já existentes. Ele
fez uma cópia idêntica de um relógio que lhe foi
entregue por um
viajante que passava pela região. Já adulto, o domínio das técnicas
relojoeiras lhe permitiu fazer vários tipos de
relógios. Ele projetou e
construiu ferramentas para mecanizar a produção. Ao mesmo tempo, ele
não hesitou em transmitir seus projetos e conhecimentos aos seus
contemporâneos. Então, ele ensinou aos seus companheiros o que sabia
sobre ourivesaria. Ele também abriu uma oficina onde colegas serviam
como aprendizes por vários meses, em diversas áreas. No final da sua
vida, Jean Richard havia transmitido seu conhecimento a futuras
gerações, ensinando aos seus cinco filhos a arte da relojoaria. Ele
também difundiu seu conhecimento a outras regiões, deixando a vila de
La Sagne para se estabelecer em Le Locle, onde morreu em 1741, aos 76
anos de idade".
A história de Jean Richard é vista como lenda porque mesmo na sua época
muitos protestantes já praticavam a arte da relojoaria. Jean Richard
provavelmente não foi o primeiro a querer dar o passo à frente com o
estabelecimento de sua própria oficina nas montanhas, responsável não
apenas por fabricar peças simples, mas projetar relógios.
Na verdade, o caminho natural de uma oficina era o
crescimento. Os "fazendeiros" das montanhas suíças, portanto, em pouco
tempo já estavam projetando relógios fantásticos por conta própria, não
meras cópias (vide, por exemplo, Abraham Louis Perrelet, nascido em
Neuchâtel, que em 1770, inventou o relógio automático).
Os "fazendeiros" suíços, é certo, tornaram-se efetivos competidores
dos genebrinos, eis que a intensa divisão de trabalho e salários mais
baixos lhes possibilitavam oferecer ao mercado produtos muito mais
baratos. Além disso, a qualidade de vida da região melhorou, pois agora
existia trabalho para todos.
Uma mudança radical na produção de relógios, no entanto, estava prestes
a ocorrer, através do intelecto de Frédéric Japy de Beaucourt (foto ao
lado). Após
alguns anos como aprendiz em La Chaux-de-Fonds, em 1771 Japy instalou
uma oficina em Neuchâtel para fabricação de ébauches.
Em 1776, Japy
projetou e mandou construir diversas máquinas para produção em massa de
peças, abandonando a construção artesanal outrora comum nas montanhas
do Jura. Em dez anos ele estava produzindo cerca de 100.000 movimentos
por ano, que inundavam a indústria a preços baixíssimos! Sua fábrica,
porém, situava-se no lado francês do Jura, e os suíços tomaram
providências construindo suas próprias manufaturas, iniciando já em
1793
(Fontainemelon).
A indústria do Jura, finalmente, ultrapassou a de Genebra. A. Pleghart,
citado por David Landes, afirmou sobre Genebra:
"Nas montanhas de Neuchâtel os funcionários trabalham mais e as
mulheres e crianças são de grande importância. Para ser honesto, o
custo de vida é maior lá, pois a terra é pobre e tudo tem que ser
trazido de outros locais. A real vantagem consiste na coordenação de
toda cadeia de produção. Para cada tipo de relógio eles usam os mesmos
movimentos de Japy. As partes móveis são sempre negligenciadas nas
mercadorias vindas de Savóia, razão pela qual precisam de acabamento em
Genebra. Por essa razão, no Jura, as partes e acessórios são facilmente
compatíveis e, o que é melhor, com o preço mais baixo possível; como
tudo é planejado antes, toda peça é fabricada igual e custa
proporcionalmente menos do que nossos movimentos, que nós
constantemente temos que modificar. Eles fazem uma infinita gama de
caixas para servir no mesmo tamanho de movimento, sabendo de antemão
que qualquer relógio de determinado calibre irá se encaixar. O mesmo
pode ser dito a respeito de mostradores, ponteiros, molas e outras
coisas, tudo custando menos do que peças fora de um padrão. O
trabalhador
sabe quando coloca as mãos em um ébauche
o que tem que fazer. Ele
não perde tempo ajustando e encaixando; ele trabalha mais corretamente
e isso é muito melhor. O mesmo pode ser dito a respeito dos
trabalhadores para quem repassa os movimentos, que sem mais divisão de
trabalho do que nós, mas feita de forma diferente, fabricam melhores
relógios por menos dinheiro..."
A produção, no entanto, continuou fragmentada em toda indústria, nos
moldes do sistema de etablissage.
Jacques David, diretor técnico da Longines, no entanto, ao visitar a
Exposição Mundial da Filadélfia em 1876, percebeu que os americanos
haviam abandonado o sistema de divisão de trabalho entre vários
produtores e verticalizado a fabricação de relógios em plantas únicas.
Longines (foto ao lado) e Zenith, após o relatório de David,
verticalizaram quase que
totalmente suas produções sob uma mesma planta industrial, com o
intuito de alcançar maior intercâmbio entre as peças do relógio e
melhor qualidade. No entanto, os suíços adaptaram a verticalização à
sua realidade, e o sistema de etablissage
nunca desapareceu. A fábrica
totalmente integrada, é certo, nunca poderia alcançar a especialização
necessária para a construção de um relógio.
La
Chaux-de-Fonds e Le Locle
Em meados do século XIX, um terço da população de La Chaux-de-Fonds, de
aproximadamente 4000 pessoas, trabalhava na indústria relojoeira. No
início do século XX, metade dos relógios do mundo era produzido lá.
No ano de 2007, em uma população de 37000 pessoas, pelo menos
6000 trabalhavam na indústria. Nas suas ruas ainda podem ser
encontrados prédios que abrigam as fábricas da Girard-Perregaux, TAG
Heuer, Ebel, Corum, Greubel Forsey, etc. Em Le Locle, a apenas alguns
quilômetros de distância, encontram-se Tissot, Audemars Piguet (Renaud
et
Papi), Ulysse Nardin, Montblanc, Cyma, Zenith e várias outras. Nas ruas
de ambas as cidades podemos ver prédios que outrora
abrigaram as fábricas da Angelus, Moser e Cie, Tavannes,
Breitling, Eberhard, etc.
O que levou Karl Marx a descrever La Chaux-de-Fonds como "uma gigantesca
fábrica de relógios" em sua famosa obra "O Capital", de 1867?
La Chaux-de-Fonds era, até meados do século XV, apenas uma pequena vila
perto da residência de verão do príncipe de Neuchâtel. Com a chegada da
relojoaria, os ferreiros de lá perceberam rapidamente uma oportunidade
de diversificação. Essa história, porém, nada difere da anteriormente
contada a respeito do desenvolvimento da relojoaria em todas as vilas
do Jura.
Na verdade, em 1781, a Corporação dos Ferreiros, Pedreiros e Marceneiros
de Neuchâtel obrigou os relojoeiros dessa cidade a se
integrarem. Isso fatalmente atrasou o desenvolvimento da relojoaria na
cidade de Neuchâtel, ao contrário de La Chaux-de-Fonds e Le Locle.
Nessas cidades, o comércio podia ser feito por qualquer pessoa, mesmo
estrangeiros. Augustin Angelini, morador de Neuchâtel, afirmou sobre o
tema, ainda em 1799:
Em La Chaux-de-Fonds e Le Locle, "qualquer estrangeiro, após pagar uma
pequena taxa, pode se estabelecer e praticar seu negócio como lhe
aprouver. Tal liberdade transformou essas cidades, em pouco tempo, tão
populosas e prósperas quanto a própria Neuchâtel".
Os incêndios em La Chaux-de-Fonds e Le Locle e a transformação
urbanística
La Chaux-de-Fonds era uma vila com quantidade razoável de artesãos,
muitos deles relojoeiros, e seguia a disposição medieval de
casas construídas de forma desordenada pelo terreno.
Na madrugada do dia 5 de maio de 1794, um incêndio começou na chaminé
de um tal de Daniel Grisard, rapidamente se alastrando em virtude de
aproximadamente 70 quilos de pólvora que eram guardados no quarto
adjacente. Como as casas eram de madeira e construídas próximas uma das
outras, rapidamente o fogo consumiu 70 delas. Dezenas de famílias
ficaram desabrigadas.
O mesmo aconteceu em Le Locle, no dia 24 de abril de 1833, quando o
centro da vila ardeu em chamas e 515 pessoas ficaram sem teto.
Nos dois casos, o material de construção das casas (madeira) e a
insuficiente largura das ruas foram determinantes para que os incêndios
se alastrassem.
Logo após os incêndios, a comunidade começou a planejar a
reconstrução
das cidades. Com o fim de evitar novos incêndios, regulamentos deveriam
ser adotados, sobretudo obrigando os habitantes a construírem suas casas
com tijolos, granito e telhas. Os ideais neoclássicos estavam em
voga, e as ruas deveriam ser em linha reta, as casas com fachadas
semelhantes e infraestrutura para melhoria das condições de higiene.
La Chaux-de-Fonds, já em 1794, estava sendo reconstruída de acordo com
os planos de Moise Perret-Gentil, com ruas bem mais largas se
encontrando em esquinas,
casas feitas de material não combustível e a existência de uma praça
central, tudo para impedir a propagação de
incêndios.
O crescimento da cidade no início do século XIX, em virtude da expansão
da relojoaria, no entanto, demandava novas residências e uma radical
alteração no plano de Perret-Gentil.
Em 1835, logo após o incêndio em Le Locle, Charles-Henri Junod
tornou-se responsável pela criação do plano de reconstrução dessa
cidade e de ampliação de La Chaux-de-Fonds. Esse projeto marca o início
da moderna La Chaux-de-Fonds, tal qual conhecemos hoje (foto ao lado).
Basicamente, Junod adotou o sistema "gradeado" de disposição de
prédios. Ao longo de avenidas centrais largas seriam construídas ruas
paralelas de forma repetitiva. O centro de La Chaux-de-Fonds foi
mantido de forma irregular, pois não havia sido queimado no incêndio de
1794.
Em Le Locle, o centro da vila tinha sido destruído pelo incêndio, razão
pela qual Junod pode criar uma praça. Manteve, no entanto, o
alinhamento das ruas paralelas a uma avenida central, também seguindo
um padrão quase como um "tabuleiro de xadrez".
O esquema "gradeado" das cidades simbolizava a ordem que se buscava na
época, bem como evitar a propagação de incêndios. No entanto, o
principal aspecto dos planos é que foram instituídos em virtude do
crescimento populacional ocasionado por uma indústria, a relojoeira.
No final do século XIX, muitos passaram a criticar o planejamento em
forma de "tabuleiro de xadrez" das cidades de La Chaux-de-Fonds e Le
Locle. Diziam que o formato das cidades era monótono e repetitivo
(aliás, crítica ainda feita a respeito de Brasília/DF).
John Ruskin asseverou sobre a expansão de Edimburgo, ainda no século
XIX (mas cujas palavras servem para La Chaux-de-Fonds), que só via
"tabuleiros de xadrez, mais tabuleiros de xadrez, sempre tabuleiros de
xadrez, um deserto de tabuleiros de xadrez...esses tabuleiros de xadrez
não são prisões para o corpo, mas sepulturas para a alma".
Não é preciso dizer que, algumas décadas depois, as virtudes da
organização "em tabuleiros de xadrez" também foram ressaltadas, pois se
afastavam do desordenado urbanismo medieval, pouco higiênico por
natureza. Com avenidas largas, a circulação de ar era maior, assim como
a luminosidade. Em La Chaux-de-Fonds, em virtude da indústria
relojoeira, a quantidade de luz incidente nos prédios era fundamental,
pois o trabalho dependia disso.
Nas ruas de La Chaux-de-Fonds e Le Locle
La
Chaux-de-Fonds (foto ao lado) e Le Locle não são destinos
turísticos típicos. Em
virtude do planejamento urbanístico, são consideradas cidades feias
entre as européias, sobretudo na Suíça. Afinal, estamos acostumados com
a visão bucólica da Suíça, com suas montanhas ocupadas por fazendas e
cidades medievais.
Conhecendo a história de ambas as cidades, no entanto, é fácil se
impressionar. Todas as ruas e avenidas seguem um padrão quase que
milimetricamente traçado. Efetivamente simbolizam a ordem. É fácil
imaginar, caminhando pelas ruas das cidades, os relojoeiros trabalhando
em cada um dos prédios, com seu formato retangular característico,
janelões para melhor disposição da luminosidade e fachadas voltadas
para o Sol. Não há cidades na Europa com tais características. O legado
relojoeiro está presente no ar que se respira e, inclusive, em museus
criados especialmente para abrigar belíssimas coleções.
Em La Chaux-de-Fonds, a alguns minutos de caminhada da estação de trem,
localiza-se o Museu Internacional de Relojoaria, cujo atual prédio -
praticamente subterrâneo - foi inaugurado em 1974. Entre os 3000
relógios em exposição, podemos citar belíssimos exemplos de Ferdinand
Berthoud (principalmente o cronômetro marítimo n. 12, mostrado na foto
abaixo), Daniel Jean
Richard, Pierre Jaquet-Droz, Matthias Hipp e outros. Ademais, é possível
adquirir o relógio comemorativo do museu, com calendário anual,
fabricado pelo relojoeiro
independente Paul Gerber (preço em 2010: 5000
francos).
Em Le
Locle situa-se o Museu de Relojoaria do Château des Monts (foto abaixo),
que
tem grande ênfase na interatividade: todas as coleções possuem filmes e
animações explicativos em 3D. A belíssima mansão, construída
no estilo Luís XVI, fica em uma região de antigas fazendas, onde
inclusive pode ser vista a residência onde morou Jean Richard.
Nas palavras oficiais do governo da Suíça:
"Não há nenhum lugar no mundo onde a relojoaria tenha deixado traços
indeléveis no desenvolvimento urbano, dentro de um perímetro claramente
definido e preservado. A Confederação Suíça - consciente do significado
desse legado - registrou as duas cidades como sítios de importância
nacional desde 1984. Em dezembro de 2004, o governo Suíço deu um passo
à frente ao submeter a candidatura das duas cidades como integrantes da
lista do Patrimônio Cultural da Humanidade, em virtude do rico legado
da relojoaria na sua estrutura urbana. Os locais incluídos na lista do
Patrimônio Cultural são de valor inestimável para a humanidade.
Representam a diversidade cultural e natural de nosso planeta. A
candidatura foi oficialmente submetida pela Suíça em dezembro de 2007 e
a decisão tomada pela UNESCO em 2009".
As cidades foram incluídas e passaram a figurar na lista de 890 locais
e bens indicados pela UNESCO como de interesse
cultural de toda
humanidade (10 estão na Suíça. Dados de 2009).
La Chaux-de-Fonds e Le Locle representam a cultura de um povo,
intimamente ligada a uma determinada indústria; são cidades que foram
feitas pelos relojoeiros e para relojoeiros. La Chaux-de-Fonds e Le
Locle: patrimônios culturais da humanidade. Nada mal para cidades
consideradas repetitivas e monótonas.
Bibliografia
- The World of Watches: history, technology and industry, de Lucien F.
Trueb;
- Uma breve história do mundo, de Geoffrey Blainey;
- Revolution in Time: clocks and the making of the modern world, de
David S. Landes;
- Le Locle and watchmaking, guia oficial da cidade;
- La Chaux-de-Fonds e Le Locle: watchmaking town planning, guias
oficiais das cidades;
- The Territory of Neuchâtel and its horological heritage, coletânea de
textos de diversos autores;
- Watchtime Magazine: the magazine of fine watches, June 2009;
- Diversos textos da enciclopédia virtual Wikipedia;
- The Worshipful Company of Clockmakers, por Flávio Maia, disponível em www.relogiosmecanicos.com.br
Créditos
Fotografias de João Calvino, Jean Richard, Japy e plano de La
Chaux-de-Fonds por wikipedia.org; vista aérea de La Chaux-de-Fonds por
Gérard Benoit; lago Léman em Genebra, fábrica da Longines, cronômetro
marítimo de Berthoud e Museu de Relojoaria de Le Locle pelo autor.
Agradecimentos
Agradeço ao povo suíço, que com organização e educação
incomparáveis, acolheram-me de braços abertos nessa viagem; ao vendedor
de bilhetes de trem da estação de Genebra (o "Reguinha"),
aeromoças da Swiss International Airlines e garçonete de um restaurante
em Le Sentier, que com singelas e espontâneas manifestações de
comportamento humano, mostraram-me o sentido da expressão "precisão
suíça"; aos
curadores dos museus que visitei: mesmo com pressa, responderam às
minhas perguntas sem vacilar; ao ídolo John Harrison, representado
em uma exposição sobre cronômetros em Le Locle: mais uma vez levou-me
às lágrimas. Finalmente, agradeço ao meu companheiro de viagem, o amigo
Igor Schütz, que também "navega" por esse planeta em busca de histórias
daquela que considero a arte mais fantástica criada pelo ser
humano: a relojoaria. Valeu cara!