Os relógios "ferroviários"
O horário padrão
As pessoas sempre utilizaram a movimentação do Sol como forma de medir a passagem do tempo. Com a invenção dos relógios mecânicos, passaram a ajustá-los de acordo com a posição do astro: é meio-dia quando o Sol está mais alto no céu.
Cada comunidade, assim, ajustava seus relógios de acordo com a posição do sol, o que implicava num horário diferente em cada região.
Numa grande cidade como Nova Iorque, por exemplo, o horário pode variar mais de um minuto apenas entre os seus limites. Segundo Keith W. Strandberg, o horário varia aproximadamente 30 segundos entre as duas extremidades da ponte São Francisco-Oakland. Quando é meio dia na cidade de Nova Iorque, é 11:56 na Filadélfia, 12:12 em Boston, 11:30 em Cleveland, 11:14 em Indianápolis, 11:46 em Richmont e 11:36 em Pittsburgh.
É possível imaginar, pois, o caos existente num mundo onde cada cidade mantinha seu exclusivo sistema de marcação de tempo.
Foram as ferrovias que possibilitaram a criação de um sistema padrão de tempo. O sistema de hora local baseado na altura do sol era extremamente perigoso para as ferrovias, que exigiram o estabelecimento de um método único.
As empresas ferroviárias inglesas foram as primeiras a adotar um sistema padrão para marcação do tempo. Em 1847, praticamente todas as ferrovias britânicas utilizam o horário de Londres para ajustar seus relógios. Por volta de 1855, a maioria dos relógios públicos da Inglaterra estava ajustada para o horário de Londres. A obrigatoriedade de tal medida, porém, só veio a ocorrer em 1880, quando o "Definition of Time Act" entrou em vigor.
Em 1876, um grupo de magnatas das empresas de ferrovias americanas organizou uma convenção com o intuito de adotar um esquema padrão para marcação do tempo, o que ocorreu em 1883. Muitas comunidades, porém, recusaram-se a seguir o sistema criado pelas ferrovias. Em 1900, por exemplo, o Conselho da Cidade de Detroit determinou que os relógios da comunidade fossem atrasados 8 minutos. Metade da cidade não obedeceu e, após considerável debate, a medida foi rescindida, fazendo com que todos voltassem a adotar o sistema da altura do sol para ajuste dos relógios. Com o "Standard Time Act", promulgado em 1918, os Estados Unidos adotaram definitivamente o sistema padrão de marcação de tempo, que já vinha sendo utilizado pelas empresas ferroviárias desde 1883.
Os relógios "ferroviários"
Até 1883, as ferrovias americanas operavam com centenas de horários diferentes. Numa grande cidade, conforme ressaltado por Pence James, havia até seis padrões diferentes de horários para partidas e chegadas de trens. Um passageiro viajando da Califórnia ao Maine necessitava ajustar seu relógio uma dezena de vezes durante a viagem.
A adoção de um sistema padrão de marcação de tempo solucionou tal problema, mas não totalmente. Não existiam relógios precisos o bastante que mantivessem o horário padrão determinado pelas ferrovias. Se os vários trens trafegando por uma linha não estivessem no horário, poderiam ocorrer acidentes.
Em 1891, dois trens trafegavam pela linha "Lake Shore & Michigan Southern", mas em sentido contrário. Um dos trens deveria, ao aproximar-se de Kipton, desviar seu trajeto para uma linha paralela de acomodação, e aguardar a passagem do outro trem. Para que nenhum acidente ocorresse, um dos trens deveria alcançar a linha paralela no horário exato. O relógio do condutor deste trem, no entanto, estava quatro minutos atrasado em relação ao horário padrão. O trem que seguia em sentido contrário, portanto, o alcançou antes dele desviar seu trajeto para a linha paralela, ocasionando um grande acidente.
Robert C. Ball, um especialista em relógios de Cleveland, testemunhou na posterior investigação sobre o acidente, ressaltando a necessidade do uso de relógios precisos pelos condutores de trens. Posteriormente, ofereceu às ferrovias um plano para manter a precisa marcação de tempo nas viagens. Criou um sistema de inspeção dos relógios usados pelos condutores de trens. Se o relógio usado possibilitasse um ajuste preciso, isso era feito; caso contrário, o relógio era descartado. Em pouco tempo, Ball estava determinando o padrão dos relógios que deveriam ser usados pelos condutores de trens. Ball, com o prestígio alcançado, forçou várias companhias a melhorar seus produtos.
Ball, segundo Desrochers, aproveitou uma oportunidade. Estava na presidência da comissão que estabelecia o padrão dos relógios usados pelas ferrovias e fez com que as fábricas de relógios produzissem relógios com o seu nome. Promoveu um produto - o relógio aprovado - e ganhou muito dinheiro. Ball colocou-se como um especialista em relógios e passou a indicar quais relógios eram ou não qualificados para o uso em ferrovias.
O padrão criado por Ball, de qualquer forma, era bastante rigoroso e possibilitou a melhoria dos produtos.
Estes eram os requisitos, em 1893, para que um relógio fosse aprovado:
- Fabricação nos Estados Unidos, com movimentos de 16 ou 18 linhas;
- No mínimo 17 rubis;
- Inexistência de tampa para o mostrador;
- Coroa às 12 horas;
- Escapamento de âncora e platô duplo, com roda de escape em aço;
- Equipado com espiral de Breguet e ajuste fino;
- Ajustado pra temperatura, isocronismo e pelo menos 5 posições;
- Ajuste de horas por alavanca;
- Variação máxima de 30 segundos por semana, devendo ser ajustado toda vez que o erro ultrapassasse este limite;
- Ser revisado uma vez por ano e inspecionado a cada duas semanas, devendo o boletim de marcha ser transportado pelo condutor do trem;
- Caixa à prova de poeira;
- Cristal sem arranhões ou trincas;
- Equipado com mostrador em arábico, ponteiros largos, mostrador de segundos e divisão em minutos.
O Bunn Special, por Rudolph Daniels Tradução livre por Flávio Maia
Atualmente, a venda a crédito constitui a maior parte de nossa economia. Na verdade, alguns especialistas argumentam que nosso crédito é muito extenso. Contudo, vendas a crédito e brindes pela compra começaram na cidade de Sioux, Iowa, com o Bunn Special. O Bunn Special era um tipo peculiar de relógio de bolso. O relógio de bolso, é claro, tornou-se um símbolo da ferrovia tão quanto a locomotiva a vapor. Os trens precisavam estar no horário não apenas para inspirar confiança, mas para evitar acidentes. Antes de um devastador acidente ocorrido em 1891, causado por um relógio defeituoso de um condutor, os maquinistas podiam usar qualquer tipo de relógio ou mecanismo de marcação do tempo. Depois do acidente, as ferrovias exigiram que os maquinistas portassem apenas relógios aprovados, e eles deveriam manter a precisão de 30 segundos a cada 14 dias (n.t. esses parâmetros estão em desconformidade com todos os demais textos pesquisados sobre o assunto). Joalherias eram freqüentemente situadas próximas às estações de embarque, para que os maquinistas pudessem trazer seus relógios para limpeza, reparo e ajuste. Apenas algumas companhias fabricavam mecanismos nos padrões requeridos: Hamilton, Walthan, Illinois e Elgin. Quando a Illinois Watch Company foi à falência, no fim da Primeira Guerra Mundial, um joalheiro da cidade de Sioux comprou o estoque de mecanismos da Illinois. Então, ele adquiriu caixas de relógios de outra companhia e colocou em seu interior o aprovado movimento Illinois. O joalheiro chamou tais relógios de "Bunn Specials", e os colocou à venda por um preço reduzido. Maquinistas e engenheiros inicialmente mostraram-se relutantes em adquirir tais relógios, mesmo que os mecanismos fossem definitivamente aprovados pelas ferrovias. O joalheiro percebeu que teria que promover seu produto híbrido. Ele então teve uma idéia. Por que não deixar o ferroviário levar o relógio após o pagamento de uma pequena entrada? Ele então poderia pagar o restante do preço com uma parcela do seu salário, durante um período de tempo. Como incentivo por cada vez que o trabalhador da ferrovia realizasse um pagamento, o joalheiro lhe daria uma entrada gratuita para o cinema situado do outro lado da rua. A quantidade do pagamento dobrava cada vez, até que o relógio estivesse totalmente quitado. Notícias sobre o Bunn Special espalharam-se rapidamente entre os trabalhadores da linha Milwaukee e, posteriormente, por outras linhas. Então, pelos ferroviários de outras cidades. Todos gostaram de comprar um bom relógio por um preço mais barato, pagando-o durante um certo período de tempo. Também gostaram da idéia de relaxar no cinema. As idéias de venda à prestação e promoção do cinema foram rapidamente seguidas por outros comerciantes da região. Então, o Bunn Special tomou seu lugar na hierarquia dos relógios de bolso ferroviários, bem como nas vendas à crédito e promoções diárias do comércio.
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Ressalte-se que os relógios "ferroviários" foram criados para trabalhadores comuns, não para pessoas ricas. Portanto, eram geralmente fabricados com caixas em aço ou folheadas a ouro, já que o operário não podia, ou não pretendia, adquirir produtos em ouro maciço.
Naquela época, porém, os únicos relógios que podiam mostrar-se mais precisos do que um "ferroviário" eram poucos modelos suíços fabricados para as competições de observatórios e os cronômetros navais.
Hamilton 992 B
O enfoque dos modelos americanos "ferroviários" sempre foi a precisão, regularidade e facilidade de uso. Mesmo os suíços, após o domínio do mercado mundial de relógios, nunca conseguiram fabricar relógios tão precisos em quantidades semelhantes aos americanos.
Eis algumas marcas que fizeram história com seus relógios "ferroviários": Ball, Illinois, Rockford, South Bend, Columbus, Elgin, Hampden, Peoria, American Walthan, Howard e Hamilton.
Os relógios "ferroviários" constituem a prova máxima da capacidade americana de produzir excelentes produtos em massa. São, portanto, importantes exemplos da relojoaria mecânica.
Bibliografia e créditos
Working on the Railroad, In Sync Magazine, volume 4, n. 03.
The Bunn Special, texto de Rudolph Daniels.
100 Years of Vintage Watches, A collector's identification & price guide, de Dean Judy.
Anúncio da Elgin por Biblioteca Catherwood.