A História do Relógio de Pulso
por
Flávio Maia, Junho de 2024 (atualizado em março de 2025).
A invenção do relógio de pulso e sua evolução ao longo dos séculos é uma jornada repleta de inovação, resistência e adaptação. Este acessório, que hoje consideramos um item comum no vestuário cotidiano, teve um começo discreto e um desenvolvimento intimamente ligado a mudanças sociais e tecnológicas. A seguir, ampliaremos o percurso histórico e a importância de marcos fundamentais como o Cartier Santos, sem deixar de lado a contribuição de diferentes modelos que pavimentaram o caminho para o relógio de pulso moderno.
Os Primeiros Passos: Um Relógio Como Adorno
Durante os primeiros 30 anos do reinado de Elizabeth I, o Conde de Leicester, Robert Dudley, destacou-se como a figura política mais importante da Inglaterra. Amante de Elizabeth, seus aposentos ficavam ao lado dos ocupados pela Rainha, e, nas cerimônias oficiais, ambos comportavam-se como consortes “não oficiais”. Na virada de 1571 para 1572, como parte de uma tradição da época de oferecer presentes à Rainha durante as festas de Ano Novo, Dudley deu-lhe um “bracelete ricamente cravejado de pedras preciosas, tendo em seu fecho um relógio”. Este gesto de afeição é, até onde se sabe, a primeira referência histórica a um relógio de pulso. Infelizmente, o modelo original não sobreviveu ao tempo, mas a ideia do relógio como acessório de pulso estava apenas começando a surgir.

Nos séculos subsequentes, as mulheres da aristocracia continuaram a adotar o uso de relógios de pulso, principalmente como adorno. Em 1809, por exemplo, quando Eugênio de Beauharnais se casou com Amélia de Leuchtenberg, a Imperatriz Josefina presenteou a nova esposa com dois relógios de pulso, fabricados pela Nitot, em Paris. Em 1812, Breguet também fabricou um relógio de pulso para a Rainha de Nápoles, demonstrando o apetite crescente pela praticidade e beleza deste item. No entanto, foi no final do século XIX que o uso de relógios de pulso ganhou um destaque mais significativo, principalmente entre as mulheres da classe média.

A Difusão do Relógio de Pulso: Do Acessório Feminino À Necessidade Militar
A transição dos relógios de bolso para os modelos de pulso teve um impacto gradual na sociedade, sendo mais tarde impulsionada por uma série de necessidades práticas. Um artigo publicado em 1887 na Horological Journal, revista oficial do Instituto Britânico de Relojoaria, relatava que “já faz algum tempo que está na moda as mulheres usarem, quando cavalgam ou caçam, relógios em pulseiras de couro presas ao pulso”. Este movimento indicava um desejo de praticidade, permitindo que o relógio fosse visível sem necessidade de tirá-lo do bolso.
No entanto, a aceitação dos relógios de pulso entre os homens foi mais lenta. Durante a era vitoriana, o esperado é que um cavalheiro usasse um terno impecável acompanhado de um relógio de bolso, sendo o relógio de pulso associado a um símbolo de afeminamento. Apenas a 1ª Guerra Mundial, com seu apelo pela praticidade e pela necessidade de coordenar horários no campo de batalha, derrubaria esse estigma, trazendo os relógios de pulso para o cotidiano masculino.
Os Primeiros Modelos: Entre Adaptações e Inovações
Em 1885, durante a 3ª Guerra Anglo-Birmanesa, surge o que pode ser considerado um dos primeiros exemplos de adaptação do relógio de bolso para o pulso. Oficialmente, os soldados britânicos começaram a usar os chamados “wristlets”, adaptando seus relógios de bolso com braceletes de couro para melhor visualizar o horário sem a necessidade de retirá-los dos bolsos. Esses primeiros “wristlets” foram importantes para o desenvolvimento do conceito de relógio de pulso, mas ainda eram essencialmente modificações improvisadas.


A transição para um modelo propriamente feito para o pulso ocorreu, sem dúvida, no início do século XX. A fábrica Rotherdam e Sons, da Inglaterra, produziu um relógio de pulso em 1899, enquanto a Omega também fabricou modelos para oficiais durante a Guerra dos Bôeres, por volta de 1900. No entanto, o grande marco dessa evolução foi a criação do Cartier Santos em 1904.

A Criação do Cartier Santos: A União de Gênios da Relojoaria
O Cartier Santos não foi um modelo criado isoladamente, mas sim o resultado de uma colaboração estratégica entre algumas das maiores mentes da relojoaria da época. Louis Cartier foi responsável pelo design da caixa do relógio, criando um modelo icônico com uma forma quadrada e parafusos visíveis, enquanto Edmond Jaeger, um renomado relojoeiro francês, foi responsável pelos movimentos e sua construção. Jaeger, devido à alta demanda, colaborou com a manufatura suíça LeCoultre & Cie, especializada na produção de movimentos precisos, para atender à necessidade de produção em larga escala. Essa parceria entre Jaeger e LeCoultre permitiu que Cartier, com sua marca de luxo, criasse relógios de alta qualidade, como o Cartier Santos.

Em 1904, o aviador brasileiro Alberto Santos-Dumont, reconhecendo a dificuldade de consultar um relógio de bolso enquanto pilotava seu avião, pediu a Louis Cartier um relógio que fosse prático para o pulso. Santos-Dumont, famoso por suas invenções no campo da aviação, precisava de uma maneira mais prática de consultar as horas enquanto estava no comando de seu avião. Louis Cartier, então, uniu o design sofisticado de Cartier com o movimento preciso de Jaeger e LeCoultre para criar um relógio de pulso que pudesse ser usado com facilidade durante o voo. Esse foi o nascimento do Cartier Santos, o primeiro relógio de pulso projetado para ser funcional durante o voo, com uma fixação inovadora que se tornaria padrão na indústria relojoeira.
A colaboração entre Cartier, Jaeger e LeCoultre resultou na introdução de inovações técnicas importantes. O Cartier Santos foi o primeiro relógio de pulso a usar um sistema de fixação do bracelete diretamente à caixa por meio de garras, substituindo o tradicional arame soldado. Este design não só proporcionava mais conforto, mas também estabelecia um novo padrão para a relojoaria, que se tornaria amplamente utilizado em modelos subsequentes.

A Primeira Guerra Mundial: O Marco da Aceitação
A Primeira Guerra Mundial foi um divisor de águas na história do relógio de pulso. Com a necessidade urgente de coordenar atividades militares e as dificuldades impostas pelas condições de combate, os oficiais britânicos passaram a usar relógios de pulso como parte do seu uniforme padrão. Ao retornar para casa, muitos desses oficiais continuaram a usá-los, e isso ajudou a quebrar o tabu que envolvia o uso de relógios de pulso por homens. O relógio de pulso, antes visto como um item feminino, agora era uma ferramenta essencial para a prática militar, e a sociedade civil passou a aceitá-lo como uma opção viável para os homens.
A guerra não só promoveu uma mudança no comportamento de consumo dos homens, mas também abriu caminho para uma nova era na relojoaria, na qual os relógios de pulso passaram a ser fabricados em grande escala, com designs voltados para o público masculino, mas sem abrir mão da elegância e sofisticação. Nesse cenário, o Cartier Santos, com sua estética única e inovação técnica, continuou a ser um símbolo de modernidade e classe.
O Legado do Cartier Santos
É inegável que o Cartier Santos, com sua introdução revolucionária de garras para fixação da pulseira, desempenhou um papel crucial na transformação do relógio de pulso em um acessório de uso generalizado, não apenas no contexto militar, mas também no universo civil. Ao olhar para a evolução do relógio de pulso, é claro que ele se tornou mais do que uma ferramenta para medir o tempo; tornou-se um ícone de estilo e funcionalidade. O Santos permanece, até os dias atuais, um marco dessa história, refletindo a união entre inovação técnica e estética atemporal.
O percurso do relógio de pulso, desde suas origens como simples adornos femininos até sua popularização entre os homens, foi gradual e repleto de desafios. Mas foi através da inovação, da adaptação às necessidades da guerra e da aceitação social que o relógio de pulso conquistou seu lugar no mundo moderno. O Cartier Santos, em particular, permanece como um símbolo do que o relógio de pulso representa: uma combinação de beleza, história e funcionalidade que atravessou séculos e continua a ser celebrado.
Fotos por David Boettcher, Omega e Cartier