Relógios Mecânicos
Relógios Mecânicos
Artigo | Curiosidades

A Restauração do Relógio Martinot-Boulle

por

Flávio Maia, abril de 2025.

Em 8 de janeiro de 2023, durante a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes da República, em Brasília, diversos objetos históricos foram danificados ou destruídos. Entre eles, um relógio do século XVIII, localizado no segundo andar do Palácio do Planalto, foi arremessado ao chão por um dos invasores e teve sua estrutura completamente despedaçada.

Inicialmente tratado como mais um item entre os muitos alvos de vandalismo, o relógio logo passou a receber atenção específica da imprensa e de instituições ligadas ao patrimônio histórico. Não era uma peça qualquer. Produzido na França, em pleno auge do reinado de Luís XIV, o objeto combinava elementos de alta relojoaria e marcenaria decorativa típicos do final do século XVII e início do XVIII. Sua autoria era atribuída a dois nomes que, até então, eram praticamente desconhecidos do público brasileiro: Martinot e André-Charles Boulle.

A menção a esses nomes — ambos associados à corte francesa — chamou a atenção não apenas pela relevância artística e histórica da peça, mas também pelo desconhecimento geral sobre sua origem e valor. Afinal, quem eram essas figuras e por que seus nomes estavam associados a um objeto que, por décadas, permaneceu discretamente abrigado no interior do Palácio do Planalto?

A assinatura Martinot e o problema da autoria

A atribuição oficial do relógio destruído no Palácio do Planalto remete a um nome importante da relojoaria francesa: Balthazar Martinot. Mas quem, exatamente, foi esse Martinot? E seria ele, de fato, o autor do mecanismo da peça em questão?

Filho do relojoeiro também chamado Balthazar Martinot, o mais famoso membro da dinastia nasceu em 1636 e se estabeleceu em Paris, onde trabalhou até sua morte, em 1714. Reconhecido como um dos maiores mestres de seu tempo, Martinot exerceu funções prestigiadas na corte: foi Horloger Ordinaire du Conseil du Roi e Valet de Chambre-Horloger da rainha Ana da Áustria. Seu ateliê, estabelecido primeiro na Rue Galande e depois no Quai de l’Horloge, tornou-se referência internacional, com clientes que iam de nobres franceses ao rei do Sião. Suas peças, muitas vezes abrigadas em gabinetes produzidos por artistas como André-Charles Boulle, estão hoje nos maiores museus do mundo, do Louvre ao Victoria & Albert Museum.

Porém, a assinatura presente no relógio do Planalto — apenas “Martinot Paris” — difere das formas mais comuns utilizadas por Balthazar Martinot ao longo de sua carreira. Em geral, suas peças eram marcadas com “B. Martinot”, “Balthazar Martinot”, “Baltazar Martinot” ou “Martinot à Versailles”. Balthazar Martinot, até mesmo por possuir ligação direta com a realeza, costumava assinar seus relógios de modo diferente dos outros membros da família, para deles se diferenciar. Esse detalhe, aparentemente secundário, pode ter implicações importantes na identificação do autor exato.

Além disso, seria preciso cruzar o período de atividade do relojoeiro com as características técnicas da peça para buscar uma datação mais precisa. O mostrador em esmalte sobre cartuchos e o uso do ébano acinzentado como revestimento interno da caixa — detalhe luxuoso, raro e praticamente invisível — indicam uma obra produzida entre o fim do século XVII e o início do XVIII. E, de fato, foi nesse exato período que Balthazar Martinot, o mais jovem, estava em plena atividade.

Mas o problema da atribuição não se encerra aqui. Não há, até o momento, documentação direta que comprove que o mecanismo foi elaborado por esse Balthazar — e não por um irmão, sobrinho ou outro relojoeiro da mesma família. Num ofício onde a colaboração era a norma, e onde peças muitas vezes levavam meses (ou anos) para serem completadas por diferentes mestres — do relojoeiro ao bronzista, do marceneiro ao esmaltador —, a assinatura nem sempre correspondia a uma autoria individual.

A inscrição “Martinot” isoladamente, portanto, é mais uma chave do que uma resposta. Atribuir a peça a Balthazar Martinot com base apenas na assinatura e na reputação é tentador — mas talvez apressado. O estilo do mecanismo, a estética do mostrador, os materiais empregados e a lógica construtiva devem ser analisados em conjunto para compor um retrato mais fiel da peça e de seu autor. No fundo, talvez estejamos diante de um relógio da “escola Martinot” — um produto de uma oficina e de uma época, mais do que de um único homem.

André-Charles Boulle: o mestre da marchetaria.

André-Charles Boulle (1642–1732) é amplamente reconhecido como o mais célebre ebanista francês do reinado de Luís XIV. Embora não tenha sido o inventor da técnica de marchetaria que leva seu nome, foi ele quem a levou a um nível de excelência sem precedentes. A “marchetaria Boulle” caracteriza-se pela incrustação de materiais como casco de tartaruga, latão, estanho e madrepérola sobre uma base de madeira, frequentemente ébano, formando composições ornamentais de grande complexidade.

A técnica, já existente no século XVI, foi radicalmente refinada por Boulle. Ele passou a trabalhar com dois cortes simultâneos e complementares — o première partie (latão sobre casco de tartaruga) e o contre-partie (casco de tartaruga sobre latão) —, o que permitia a produção de duas versões de uma mesma marchetaria. Isso conferia simetria estética. Seu domínio do latão recortado e a integração com bronzes dourados criavam objetos que eram ao mesmo tempo funcionais e obras de arte.

Nomeado oficialmente Ébéniste, Ciseleur et Marqueteur du Roi por Luís XIV, Boulle teve permissão para instalar sua oficina nas Galerias do Louvre — um privilégio raro, que lhe concedia liberdade das regras rígidas das corporações. Lá, pôde reunir artesãos de diferentes ofícios sob sua direção, integrando saberes como escultura, gravura e fundição.

Apesar de sua fama, Boulle não costumava assinar suas obras. Isso era comum na época: a assinatura de móveis e objetos só passou a ser exigida na França em 1743, após sua morte. A autoria de suas peças, portanto, depende de análise estilística, documentação indireta ou proveniência. No caso dos relógios, esse desafio é ainda maior. Boulle produziu diversos gabinetes para relógios de pedestal — frequentemente em colaboração com relojoeiros como Balthazar Martinot — mas quase nunca com qualquer marcação que permitisse uma identificação inequívoca.

O relógio do Palácio do Planalto possui características que remetem fortemente à oficina de Boulle: marchetaria em casco de tartaruga com latão, proporções compatíveis com o estilo Regência, ornamentação de bronze e, sobretudo, um detalhe raríssimo — o revestimento interno do gabinete em ébano cinzento, uma madeira extremamente densa e de difícil obtenção. Essa escolha, ainda mais notável por ser aplicada numa parte invisível ao observador comum, é um gesto de sofisticação que encontra paralelo em poucas oficinas além da de Boulle.

No entanto, como não há assinatura, documentação ou inventário conhecidos que vinculem diretamente a peça a Boulle, a atribuição deve ser feita com cautela. Poderia tratar-se, ao que tudo indica, de uma obra de sua escola — provavelmente executada por seus filhos, aprendizes ou colaboradores diretos, que continuaram produzindo com alta qualidade mesmo após a morte do mestre. De qualquer forma, como veremos adiante, seus restauradores afirmaram que o trabalho efetivamente foi executado por Boulle, até mesmo porque existe outro relógio idêntico documentado na história.

Uma trajetória desconhecida

A origem precisa do relógio e o caminho que o levou da França até o interior do Palácio do Planalto permanecem, por ora, desconhecidos. Ao que parece, não há documentação oficial que esclareça quando, por quem ou com que finalidade a peça foi incorporada ao acervo do Estado brasileiro. Também não se sabe ao certo se o relógio chegou ao Brasil como parte do espólio trazido pela corte portuguesa em 1808 — hipótese plausível, mas não comprovada — ou se foi adquirido posteriormente em um esforço de compor um acervo simbólico para a nova sede do poder executivo.

A ausência de registros não diminui o valor do relógio: a peça foi feita sob encomenda para ambientes formais da aristocracia europeia e atravessou séculos e regimes para, eventualmente, ocupar um espaço de representação política em um país do hemisfério sul.

Quem poderia restaurar o relógio?

Diante da complexidade da peça destruída, a pergunta surgiu naturalmente: quem teria a competência técnica para restaurar um relógio desse porte? A escolha recaiu sobre Dominique Mouret e seu discípulo, Nicolas Uhl, ambos estabelecidos na cidade de Sainte-Croix, Suíça.

Dominique Mouret iniciou sua formação em relojoaria aos 16 anos, na escola técnica de Dreux, na França. Trabalhou com marcas importantes e passou por uma experiência determinante nos anos 1990: sua participação na THA (Technique Horlogère Appliquée), uma manufatura experimental fundada por nomes que se tornariam lendas na relojoaria moderna, como François-Paul Journe, Denis Flageollet e Vianney Halter. Embora a THA não tenha sobrevivido como empresa, sua influência perdura até hoje, sobretudo entre os colecionadores de relógios de pulso. Ter feito parte desse núcleo pioneiro moldou a abordagem de Mouret para sempre: atenção absoluta aos detalhes, obsessão por autenticidade e, principalmente, uma visão integrada da peça — onde forma, função e história não podem ser separadas.

Após essa fase, Mouret optou por um caminho mais independente e especializado. Fundou seu próprio ateliê em Sainte-Croix, com uma estrutura mínima, voltada à restauração de peças históricas complexas, sem site, sem anúncios, e com clientela composta quase exclusivamente por indicação.

Ao seu lado, Nicolas Uhl, jovem relojoeiro suíço que se tornou seu aprendiz e colaborador direto. Uhl foi treinado sob a filosofia de Mouret: restaurar sem apagar o passado, compreender antes de intervir, preservar o que for possível da matéria original.

A restauração

Quando o caixote de madeira chegou em Sainte-Croix, ninguém poderia prever o desafio que aguardava dentro. O relógio estava em pedaços, aparentemente irrecuperável. “A primeira coisa que fiz foi rir. Porque, ao ver o estado em que o objeto estava… ele estava devastado. A peça estava destruída”, confessou o restaurador principal Nicolas Uhl, descrevendo seu encontro inicial com o que viria a se tornar um dos projetos mais desafiadores e gratificantes de sua carreira.

“Não me pareceu intransponível, mas sim muito difícil. Como subir uma escada: degrau por degrau”, continuou ele, revelando a mentalidade que guiaria o processo. Não era um relógio comum. Tratava-se de uma obra-prima da arte decorativa e relojoaria francesa, saída da oficina de André-Charles Boulle, marcheteiro da corte de Luís XIV. Um objeto de valor inestimável que, segundo informações das autoridades brasileiras, havia viajado da França para Portugal como presente real e posteriormente para o Brasil, acompanhando Dom João VI e sua corte em 1808. Agora, séculos depois, encontrava-se despedaçada, seus fragmentos de marchetaria, escamas de tartaruga e bronze dourado aguardando quem pudesse consertá-la.

“Foi necessário refletir muito: como faríamos? Quem chamaríamos? Isso exigiu as mãos, as costas e o cérebro. Tudo foi posto à prova”, relata o artesão, enfatizando a natureza do desafio que enfrentavam. O pensamento da equipe foi: “Esse relógio é realmente irreparável. Mas ele é importante. Podemos fazer algo?”

A restauração começou como um quebra-cabeça. Nicolas reposicionou todos os minúsculos pedaços de marchetaria com fita adesiva, mapeando o que havia sobrado e o que precisaria ser recriado. A reconstrução exigiria vários especialistas: relojoeiros, marceneiros, restauradores de marchetaria e bronzistas.

O gabinete de carvalho, revestido com uma complexa marchetaria de latão e escamas de tartaruga, estava completamente rachado. “Estava rachado por todos os lados, estourado”, lembra um dos restauradores. Foi necessário desmontá-lo inteiramente, peça por peça, para consolidar os encaixes. “A cola antiga estava seca, os encaixes se moviam. Rasparamos a cola antiga e colamos novamente”.

Durante este processo, a equipe fez uma descoberta surpreendente: o interior do gabinete era revestido com ébano acinzentado — um material extremamente precioso. O ébano, madeira tropical de crescimento lentíssimo, é notável por sua densidade extrema e textura fina, características que o tornaram um dos materiais mais valorizados na história da marcenaria de luxo. A variante acinzentada é particularmente rara, ocorrendo em menos de 10% das árvores de ébano, que já são naturalmente escassas. Na época de Boulle, seu uso era frequentemente restrito à realeza por decretos reais, e encontrá-lo no interior de um móvel — parte normalmente invisível — era um gesto de extravagância.

“É importante saber que esse revestimento foi provavelmente feito antes da montagem da peça inteira”, explicou um dos restauradores, revelando o extraordinário nível de sofisticação do objeto. Esta escolha de deixar à vista o mecanismo e o interior luxuoso através de vidros transparentes nas laterais antecipa, em três séculos, uma prática que se tornaria comum nos relógios contemporâneos de pulso com “display back” ou fundo transparente — quando o fabricante tem tanto orgulho do acabamento e da beleza do mecanismo que o expõe através de um cristal de safira, transformando o interior funcional em elemento estético.

A marchetaria exigiu um trabalho meticuloso. Cada escama de tartaruga e recorte de latão precisou ser removido, limpo e restaurado individualmente. “As escamas eram muito finas. Ao colar novamente com papel, tudo se tornava mais estável e menos frágil”. Para devolver a forma original às escamas deformadas, foi utilizado calor. “Para isso, usei folha de estanho aquecida para moldar as escamas e devolver sua forma original. Quando se remove o revestimento, ele se deforma completamente; é preciso restaurá-lo sobre suportes moldáveis com calor.”

Para as áreas onde faltavam pigmentos, o processo era igualmente delicado: “Usei lenço de papel muito fino, desdobrado para evitar sobreespessura, e fixei os pigmentos com cola de peixe. Só intervimos onde havia lacunas; o restante foi preservado, pois ainda havia papel antigo em boas condições”, pondera, demonstrando o respeito pelo objeto que restaurava.

Quando havia necessidade de recriar partes da marchetaria, o desafio era ainda maior: “Quando precisávamos refazer peças de latão, fazer cortes muito finos e curvos, com a precisão necessária para que, no fim, essas peças ficassem invisíveis… Era preciso entrar no espírito de quem a criou no século XVIII, pensar com a mesma lógica, com a mesma mão.”

Um dos maiores desafios foi a recriação dos vidros curvos que adornavam os lados do gabinete. Feitos sob medida por um soprador de vidro especializado, o senhor Huguenin, estes elementos exigiram a criação de moldes específicos e o uso de vidro antigo recuperado de janelas velhas. “Nunca o procuro por algo simples, e ele nunca falha”, comentou Dominique Mouret sobre seu parceiro artesão. A termoformação a 800°C foi apenas o começo — cada peça ainda precisou de acabamento manual em suas bordas para se encaixar perfeitamente na moldura.

O próprio soprador de vidro descreveu o desafio: “Tivemos sorte: ainda existia um dos vidros originais, e ele serviu como base para criar o molde. Os primeiros testes serviram apenas para verificar se o molde funcionava — sabíamos que seria improvável acertar logo de início.” Após várias tentativas frustradas com vidro moderno, que tendia a “devitrificar” (tornar-se opaco) durante o processo de aquecimento, a solução veio do passado: “Foi aí que optamos por recuperar vidro antigo de janelas, e deu muito certo. A composição do vidro era similar, mas a diferença estava no processo de fabricação original.”

O mecanismo do relógio, assinado pelo relojoeiro Martinot de Paris, também exigiu intervenção profunda. “O mecanismo estava em estado lamentável, com várias modificações indevidas acumuladas ao longo dos séculos”, relata Dominique Mouret. Ao longo do tempo, havia sofrido alterações inadequadas, incluindo a adição de componentes anacrônicos. “Encontramos inclusive peças em alumínio — material que, evidentemente, não existia em 1730…”, comenta com espanto.

A equipe decidiu por uma abordagem radical: “Decidimos ‘zerar’ tudo: buscamos um mecanismo idêntico, da mesma época e com a mesma assinatura, para comparar, entender e refazer o que era necessário com total fidelidade.” Peça por peça, o movimento foi restaurado, embora um elemento importante já estivesse ausente muito antes do vandalismo: o mecanismo de repetição acionado por cordão, uma complicação sofisticada que permitia ouvir as horas no escuro sem precisar ver o mostrador.

“Esse tipo de complicação costumava ser removida por relojoeiros menos cuidadosos ao longo das décadas, que visavam economizar tempo e dinheiro. ‘Ninguém vai perceber que falta’, pensavam. Mas hoje isso resulta em peças incompletas — o que é lamentável”, explica Mouret, evidenciando como mesmo as ausências têm significado histórico. A equipe optou por não reconstruir este sofisticado mecanismo de repetição sob demanda, respeitando a trajetória histórica do objeto. Em compensação, o sistema original de sonorização que marca automaticamente as horas e meias-horas foi meticulosamente restaurado.

Até os mínimos detalhes receberam atenção: os parafusos modernos que haviam sido adicionados ao longo do tempo foram todos substituídos por réplicas historicamente precisas. “Decidimos fazer algo sério: fabricamos uma nova série de parafusos com cabeças idênticas às da época de André-Charles Boulle”, explica o restaurador. “Encontramos até parafusos com cabeça Philips (!). Removemos todos eles.” Uma pequena empresa em Lyon produziu cerca de cem parafusos sob medida, conforme desenhos técnicos detalhados, resolvendo um problema prático para futuras intervenções: “Agora, todos os bronzes da peça possuem parafusos iguais. Isso resolve um problema comum em restaurações: no futuro, ao desmontar os bronzes, alguém poderia recolocar os parafusos errados em cada posição.”

O azulamento das peças de aço — um processo químico delicado que envolve o aquecimento de sais a mais de 300°C — demandou precisão absoluta. “O objetivo é obter um azul uniforme, com a tonalidade certa — nem muito claro, nem puxando para o violeta, o que acontece com facilidade e dá um resultado indesejado”, explicou Nicolas Uhl. “A peça começa a mudar de cor: do amarelo para o marrom, depois violeta, e enfim azul”.

Após meses de trabalho meticuloso, o relógio ressurgiu em seu esplendor histórico. Os bronzes dourados — particularmente impressionantes com seus relevos profundos característicos do final do período Regência e início do estilo Luís XV — voltaram a brilhar. “Basta ver os bronzes: numa peça da mesma época, os relevos seriam menos profundos. Aqui, estamos no fim da Regência, já no limiar do estilo Luís XV — e sentimos essa força”, observa um dos restauradores. “Olhe esta concha aqui — é uma peça muito poderosa. Visualmente, ela brilha. Quando se está diante dela, é quase arrebatador. É uma peça com energia.”

A marchetaria de escamas de tartaruga e latão recebeu um acabamento em goma-laca aplicada com a técnica tradicional de tamponamento, revelando novamente o jogo de luz e cores que fez desse tipo de decoração uma das mais prestigiosas de seu tempo. “A gravação ressaltava muito bem a marchetaria. Depois de polida, a peça ganhava relevo e profundidade”.

“A peça fala por si”, reflete Dominique Mouret, contemplando o resultado final. “Quando se trata de uma restauração profunda como essa… pensamos nos artesãos que a criaram, tentamos ver com os olhos deles. E estamos orgulhosos de poder devolver ao objeto seu estado — não exatamente original, pois o tempo deixou marcas —, mas quase.”

Para a equipe, o projeto transcendeu a mera restauração física. “As maiores dificuldades foram, em primeiro lugar, recuperar a cor específica que fica sob as escamas de tartaruga — uma tonalidade muito particular. Tivemos que pesquisar bastante: usamos diferentes terras, diferentes pigmentos até reencontrar exatamente o tom original”, recordou um dos restauradores. Foi um trabalho que mobilizou toda a equipe, cada um contribuindo com sua especialidade: “Bertrand ficou responsável pela gravação e pelos recortes, William cuidou do verniz, e Julien e eu tratamos de toda a parte de marcenaria, desmontagem e remontagem. Foi realmente um trabalho de equipe — e o resultado ficou excelente.”

A restauração tornou-se uma ponte através do tempo, conectando os artesãos contemporâneos àqueles que, há três séculos, criaram esta obra-prima. “Nos interessamos pela história da peça. Pensar em todos os artesãos que, ao longo dos séculos, intervieram em sua vida… Ver as escamas de tartaruga, a marchetaria, o latão — é um trabalho fabuloso. Pessoas que dedicaram toda a paciência e o saber-fazer à sua realização.”

“É uma honra poder tocar numa peça assim. Sempre dá um aperto no coração quando ela deixa o ateliê”, confessou Nicolas Uhl. “Algumas peças a gente simplesmente não quer que vão embora. Gostaríamos de conviver com elas todos os dias.”

“E, quando pensamos no mundo atual — onde tudo é veloz, desmedido, descartável —, percebemos o quanto, há 300 anos, um objeto como esse devia ter uma outra dimensão”, reflete, estabelecendo um contraste entre nossa era do descartável e o cuidado artesanal do passado. Esta observação ressoa no contexto dos relógios contemporâneos, onde os melhores exemplares ainda seguem essa tradição de excelência artesanal e transparência que revela o mecanismo, embora agora em miniatura para o pulso, celebrando a beleza funcional antes reservada apenas a peças excepcionais como o relógio de Martinot.

Completamente restaurado, o relógio histórico voltou a Brasília. O conhecimento transmitido durante o processo certamente permitirá que artesãos brasileiros possam mantê-lo para as gerações futuras. “Assim, ela poderá viver não apenas nas próximas décadas, mas também no próximo século”, concluiu Dominique Mouret, satisfeito por ter contribuído para mais um capítulo na longa jornada deste relógio que conecta dezenas de artesãos a mais de trezentos anos de história.

Sobre a pesquisa

A ideia deste trabalho surgiu ao assistir a um documentário suíço sobre a restauração do relógio do Palácio do Planalto. Movido pela curiosidade e pela relevância histórica da peça, iniciei minha pesquisa buscando o maior número possível de reportagens da época, com o intuito de localizar informações oficiais que pudessem ter sido divulgadas por órgãos públicos.

Logo percebi que os fatos narrados tanto pela imprensa quanto por fontes governamentais apresentavam versões, no mínimo, duvidosas — algumas delas francamente equivocadas. Um exemplo gritante: certa reportagem afirmava que o relógio teria sido presenteado pelo rei Luís XIV da França à infanta Maria Bárbara de Bragança, por ocasião de seu casamento com Fernando VI da Espanha, em 1729. No entanto, Luís XIV faleceu em 1715! Esse tipo de inconsistência me levou a concluir que seria impossível confiar apenas nas informações disponíveis na mídia.

Decidi, então, recorrer à fonte primária mais direta: entrei em contato com a Curadoria de Museus da Presidência da República, enviando uma série de perguntas detalhadas sobre a origem, trajetória e conservação do relógio. Perguntei sobre a possibilidade de ele ter sido um presente do governo francês a D. João V (ou mesmo a D. Pedro II), sobre registros históricos de sua entrada na Corte Portuguesa, sua presença no Brasil desde 1808, eventuais intervenções anteriores à restauração recente e, ainda, sobre o envolvimento da Audemars Piguet no projeto — já que os restauradores foram, de fato, Nicolas Uhl e Dominique Mouret. Quis saber, também, onde o relógio será exibido, se poderá ser visto pelo público e se haverá manutenção técnica contínua feita por profissionais capacitados.

Nenhuma dessas perguntas foi respondida.

Diante do silêncio institucional e da já conhecida precariedade documental em objetos ligados à relojoaria no Brasil, optei por atuar como um verdadeiro arqueólogo: reconstruir a história do relógio com base apenas na observação do objeto. Extraí imagens do documentário e as comparei com outras fotos disponíveis em livros e na internet, tentando verificar se o mecanismo assinado “Martinot à Paris” poderia ser atribuído a Balthazar Martinot. Percebi similaridades nos movimentos utilizados pela família Martinot, o que sugeria uma autoria comum, mas não foi possível afirmar com segurança que o mecanismo teria sido feito especificamente por Balthazar. Era plausível afirmar apenas que provinha do clã Martinot.

Por outro lado, a hipótese de que o gabinete teria sido feito por André-Charles Boulle me pareceu bastante sólida. O estilo, o padrão de acabamento ressaltado pelos restauradores, a utilização de ébano-cinzento no interior — material raro — e o contexto histórico, tudo indicava coerência com a produção de Boulle.

Para confirmar minhas impressões, entrei em contato com o relojoeiro Nicolas Uhl, responsável direto pela restauração, e fui surpreendentemente bem recebido. Nicolas confirmou minhas suspeitas: não é possível determinar qual dos Martinots construiu o mecanismo, mas é admissível, sim, atribuir o gabinete a Boulle. Ele compartilhou ainda uma revelação surpreendente: existe um relógio idêntico ao brasileiro — um verdadeiro “irmão gêmeo”. O outro relógio está exposto no Museu Jacquemart-André, em Paris.

Fiquei muito satisfeito com o resultado dessa pesquisa feita à distância, sem jamais ter visto o relógio de perto. Pretendo continuar em contato com o restaurador e, se possível, visitar pessoalmente a peça. Espero, também, que as autoridades brasileiras eventualmente apresentem documentação que possa sustentar suas alegações oficiais sobre a origem do relógio — se é que tais documentos de fato existem.

Fotografias da restauração extraídas do documentário citado no texto, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=75DXLMg10fc&t=3332s