Relógios Mecânicos
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Artigo | Curiosidades

Como Marcas e Estratégias Definiram a Cronometragem nas Olimpíadas

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Flávio Maia, março de 2025. Baseado no artigo “A Question of Prestige in the Watch Industry” Swiss Diplomacy and Sports Timing (1964-1970), de Quentin Tonnerre

A trajetória da cronometragem em eventos esportivos de elite é marcada por escolhas estratégicas que ajudaram a definir padrões de precisão e confiabilidade, e por parcerias que se tornaram verdadeiros marcos históricos. Entre as marcas que mais se destacaram nesse cenário, Omega, Longines e, posteriormente, Seiko, ocupam posições de relevo, cada uma refletindo o avanço tecnológico e a evolução dos critérios de seleção dos organizadores dos grandes eventos esportivos.

Antes da entrada da Omega na cronometragem olímpica em 1932, a medição do tempo nas competições esportivas era feita de maneira descentralizada, com cronógrafos individuais operados por juízes de prova. Cada árbitro registrava o tempo de forma manual, o que frequentemente levava a discrepâncias e questionamentos sobre os resultados. Essa falta de padronização e a margem de erro inerente ao método fizeram com que o Comitê Olímpico Internacional (COI) buscasse alternativas mais precisas para garantir maior confiabilidade às competições.

Em 1932, com a realização dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, o COI buscava, mais do que nunca, assegurar a máxima precisão na medição do tempo – um elemento crucial para a credibilidade e o sucesso da competição. Foi nesse contexto que a Omega, já reconhecida por sua expertise em cronometragem e constante busca por inovações tecnológicas, apresentou uma proposta capaz de atender a essas exigências. A escolha da Omega se deu pela sua capacidade de oferecer equipamentos de medição de alta precisão, que garantiram resultados confiáveis e contribuíram decisivamente para a profissionalização da cronometragem nos esportes. Essa parceria inaugural com os Jogos Olímpicos não apenas reforçou a reputação da Omega, como também iniciou uma relação que perduraria por décadas.

Paralelamente, a Longines já vinha se destacando como uma das principais marcas na área de cronometria esportiva. Com uma longa tradição e um histórico repleto de eventos internacionais de destaque, a Longines era sinônimo de precisão e qualidade na medição do tempo. Mesmo possuindo uma reputação consolidada, a Longines não foi a escolhida para a cronometragem dos Jogos de 1932. A decisão pelo ingresso da Omega nessa função deveu-se a uma combinação de fatores técnicos e de inovação, que fizeram com que os equipamentos e a abordagem proposta pela Omega fossem considerados mais adequados para atender às demandas específicas de um evento da magnitude dos Jogos Olímpicos.

Após 1932, a Omega manteve sua posição de liderança e hegemonia na cronometragem esportiva. Durante várias décadas, a marca se firmou como a fornecedora oficial de tempo para os maiores eventos do mundo, sendo sinônimo de inovação, precisão e confiança. Contudo, em 1964, durante os Jogos Olímpicos de Tóquio, houve uma mudança significativa: a Seiko foi oficialmente escolhida para assumir o papel de cronometradora. Essa decisão foi fundamentada na superioridade técnica de seus equipamentos, desenvolvidos para atender às exigências de um cenário esportivo cada vez mais moderno e tecnológico. Seu cronógrafo manual, por exemplo, possuía um came em formato de coração no eixo do balanço, garantindo que este sempre retornasse à mesma posição relativa a cada contagem de tempo. Essa transição não apenas marcou o fim de uma era dominada pela Omega, mas também simbolizou o avanço das inovações na área de cronometragem, posicionando a Seiko como referência no setor.

Esta é a versão oficial da cronometragem esportiva, tal como divulgada pelas empresas que protagonizaram essa história. Nos bastidores, porém, a realidade é bem mais complexa: além da busca pelo domínio técnico, a cronometria esportiva foi palco de episódios controversos, marcados por subornos, ameaças e uma intensa disputa diplomática e comercial, na qual a medição do tempo se tornou um símbolo de prestígio nacional.

A Disputa Inicial e o Papel do Lobby

A partir dos anos 1940, a corrida pela excelência na cronometragem esportiva internacional se concentrava essencialmente em duas marcas suíças: a Omega e a Longines. Nesse período, a Omega consolidava sua posição por meio de uma estratégia de lobby extremamente eficaz. Dois membros influentes do Comitê Olímpico Internacional – Albert Mayer e Otto Mayer – desempenhavam papel decisivo na escolha dos equipamentos de cronometragem para eventos de grande porte. Otto Mayer, que também atuava como representante autorizado de vendas da Omega em Lausanne, era reconhecido por favorecer a marca de forma consistente. Essa articulação não era meramente comercial; ela se assemelhava aos mecanismos de apoio à cartelização que a indústria relojoeira suíça já experimentara no período entre guerras, onde o prestígio e a proteção estatal eram essenciais para manter a liderança no mercado e reforçar a imagem do “Swiss made” como sinônimo de qualidade.

Paralelamente, o ambiente internacional impunha desafios externos. Nos anos 1950, os Estados Unidos, em resposta à forte presença dos relógios suíços no mercado, aumentaram os impostos de importação sobre esses produtos. Esse movimento, que desencadeou uma verdadeira ‘guerra dos relógios’, contrastava com os princípios do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), que visava reduzir barreiras comerciais.


A Seiko entra na disputa

A situação passou por uma mudança drástica com as Olimpíadas de Tóquio, em 1964. Nesta edição, a escolha do cronometrista oficial foi atribuída à japonesa Seiko. A narrativa simplista da Seiko defendia que sua tecnologia era superior, mas os documentos e depoimentos da época demonstram uma realidade mais complexa. Em uma carta emblemática, Otto Mayer – cujo apoio tinha sido fundamental para a Omega – declarou:

“Não foi sem amargura que vi o plágio dos nossos concorrentes japoneses, pois eles não hesitaram, não só em se inspirar, mas também em copiar servilmente algumas de nossas instalações em Roma.”

Essa declaração evidencia que, longe de se basear exclusivamente em inovações técnicas, os cronógrafos e instalações da Seiko teriam sido, em parte, reproduções dos modelos desenvolvidos pela própria Omega. A aposentadoria de Otto Mayer, ocorrida em 1964, significou uma perda significativa de influência para a Omega dentro do Comitê Olímpico, fato que levou a Federação da Indústria Horológica Suíça (FH) a solicitar ao Ministério das Relações Exteriores uma intervenção para tentar reequilibrar a balança e recuperar o apoio perdido no COI.


Os suíços contra-atacam

Após Tóquio, a pressão sobre as marcas suíças intensificou-se de forma alarmante. Enquanto a Seiko consolidava sua presença internacional, a exportação de relógios japoneses para a Europa disparava – de 6,1% em 1960 para 15,7% em 1970 –, ampliando o desafio competitivo para a indústria relojoeira suíça. Nos Jogos Asiáticos de 1966, a Seiko adotou uma estratégia agressiva: ofereceu seus serviços de cronometragem de forma gratuita e ainda incluiu doações de equipamentos, como placares avaliados em aproximadamente 500 mil francos suíços. Esse movimento demonstrava que, para os japoneses, o contrato de cronometragem não era apenas uma questão técnica, mas sim um investimento estratégico na construção de marca.

Em resposta, a Omega tentou igualar a oferta japonesa. A empresa anunciou que equiparia gratuitamente o evento com toda a tecnologia necessária – uma medida inédita para uma empresa relojoeira suíça. Porém, mesmo com essa proposta ousada, os esforços de negociação não resultaram no sucesso esperado. Após meses de discussões infrutíferas, Robert E. Forster, diretor de vendas da Omega, enviou uma carta ameaçadora ao presidente do comitê organizador dos Jogos Asiáticos, afirmando que tomaria medidas, inclusive recorrendo à arbitragem pelo Câmara de Comércio Internacional em Paris, se a decisão não fosse revista. Paralelamente, Gérard Bauer, presidente da FH, com o apoio da Embaixada Suíça em Bangkok, instruiu Philippe Desmeules – representante da entidade responsável pelo lobby – a alertar as autoridades tailandesas de que a FH boicotaria a primeira Feira Internacional de Bangkok, prevista para 1966, caso o contrato fosse concedido à Seiko. Como contraproposta, caso a Omega fosse escolhida, a FH se comprometia a estabelecer um centro de treinamento profissional para jovens tailandeses nas áreas de relojoaria e eletrônica. Apesar de todas essas manobras e ameaças, o contrato acabou sendo concedido à Seiko, evidenciando que o novo competidor tinha conseguido, por meio de sua “generosidade”, ultrapassar os métodos tradicionais de disputa suíça.


A Disputa nos Jogos de 1968 e o Escândalo do Suborno

Em 1964, com a aproximação dos Jogos Olímpicos da Cidade do México, que seriam realizados em 1968, o governo suíço demonstrou uma determinação crescente em garantir a vitória de um fabricante nacional. No entanto, ao invés de unir forças, Omega e Longines entraram em uma disputa acirrada pelo contrato – um conflito que chegou a ser descrito como “uma guerra civil entre os suíços.” Durante esse período, a rivalidade se intensificou de tal forma que a Longines se envolveu em práticas ilícitas: seu representante, operando por meio da empresa Steele, teria ofertado um suborno de um milhão de pesos ao ex-presidente mexicano, Emilio Portes Gil, com o objetivo de influenciar a decisão em favor da Longines.

Esse episódio, que expôs as tensões internas e a competição desmedida entre as duas marcas, provocou a indignação dos altos escalões suíços. Em meio a esse cenário, surgiram declarações que sintetizavam a necessidade de superar a rivalidade interna. Em uma nota oficial, ficou registrado que:

“…essa competição, embora seja compreensível – até benéfica quando a indústria relojoeira suíça é a única candidata para operações de cronometragem – está completamente deslocada hoje […] quando estamos buscando e obtendo o total apoio do nosso governo para a nossa indústria como um todo.”

Pressionados por esse clima de conflito, os representantes da FH passaram a insistir para que Omega e Longines abandonassem suas disputas individuais e apresentassem uma proposta conjunta. A ideia era clara: somente com uma frente unida seria possível enfrentar a ameaça externa, especialmente a expansão da Seiko, e preservar o prestígio da indústria suíça no cenário internacional.


Os Primeiros Sinais de Cooperação

A pressão exercida pelas autoridades suíças e pelos representantes da FH começou a produzir efeitos. Em meio à disputa acirrada pelos contratos dos Jogos da Cidade do México, foi acordado que as duas marcas deveriam agir de forma conjunta. Em 20 de agosto de 1965, o embaixador Fernand Bernoulli comunicou ao Conselheiro Federal Wahlen que a Omega havia sido escolhida para a cronometragem dos Jogos do México – uma vitória que veio acompanhada do envio de presentes, como relógios, destinados aos familiares de alguns membros influentes da organização do evento. Contudo, mesmo com esse êxito, o espectro da concorrência japonesa continuava a pairar sobre o setor.

A ameaça representada pela Seiko forçou as marcas suíças a reavaliarem suas estratégias. Em 5 de julho de 1966, durante uma reunião em Biel, discutiu-se não apenas o possível compartilhamento de futuros contratos – especialmente os dos Jogos Olímpicos de Munique de 1972 –, mas também estratégias para influenciar o cenário internacional. Entre elas, destacavam-se as negociações da rodada Kennedy do GATT, visando impedir a criação de benefícios que pudessem favorecer concorrentes externos, como os japoneses.


A Crise em Atenas e a Necessidade de uma Frente Unida

Em 1968, os preparativos para eventos em Atenas (Jogos dos Bálcãs de 1968 e Campeonato Europeu de Atletismo de 1969) trouxeram novos desafios. A Omega, ocupada com os preparativos para os Jogos do México, não conseguiu alocar seus técnicos para cooperar com os organizadores gregos, o que permitiu que a Seiko se estabelecesse de forma decisiva no mercado europeu, ao conquistar os contratos de cronometragem das provas. Em uma situação crítica, o embaixador suíço Jacques-Albert Cuttat procurou pessoalmente o secretário-geral do Esporte da Grécia, Constantin Aslanidis, para assegurar que futuras concessões de contratos de cronometragem fossem reservadas a empresas suíças. Cuttat ressaltou os esforços já realizados pelos suíços, mencionando a criação da Escola de Relojoaria de Atenas em 1966 e destacando “os esforços da indústria relojoeira suíça para formar uma mão-de-obra qualificada” e “os inúmeros sucessos da Omega e da Longines na cronometragem.” A resposta de Aslanidis foi contundente:

“Os suíços, através de sua indiferença, permitiram que os japoneses ganhassem terreno na Europa.”

Esse comentário serviu como alerta e reforçou a urgência de uma ação conjunta entre Omega e Longines. A crise de Atenas foi, de fato, o estopim para que as duas empresas finalmente enviassem uma proposta de cooperação – uma frente unida que se tornaria a base para as negociações futuras e para a defesa do prestígio nacional suíço.


A Universíada de Lisboa e a Reviravolta para Turim

Enquanto as discussões internas e as pressões diplomáticas continuavam, o cenário esportivo ofereceu mais um capítulo decisivo. Durante a Universíada de Lisboa (Campeonato Mundial de Atletismo Universitário), em 1969, as negociações para a criação de uma grande empresa de cronometragem suíça estavam em andamento. No entanto, os representantes da FH foram surpreendidos ao saber que o contrato havia sido concedido à Seiko. A escolha se justificava, segundo os organizadores portugueses, pela oferta generosa da concorrente japonesa – que incluía placares gratuitos, com um valor estimado em cerca de 500 mil francos suíços. Essa decisão, tomada por um ministério isolado (o Ministério da Educação), contrariava os esforços coordenados pela FH e evidenciava uma falta de alinhamento no aparato governamental.

Felizmente para os interesses suíços, o evento de Lisboa foi cancelado em decorrência de dificuldades financeiras e de uma crise estudantil global, o que, de certa forma, “salvou” momentaneamente o prestígio da indústria relojoeira nacional. Essa interrupção, no entanto, não encerrou o conflito, mas sim abriu uma nova oportunidade: a realização da Universíada em Turim, marcada para 1970.

Em julho de 1969, Gérard Bauer, figura central na defesa dos interesses suíços, reuniu-se com Umberto Agnelli – membro do conselho da Fiat e irmão do fundador da empresa – inicialmente sob o pretexto de discutir inovações tecnológicas no esporte. Contudo, o real objetivo da reunião era garantir o apoio de Agnelli para assegurar que, desta vez, uma marca suíça fosse escolhida como cronometrista oficial do evento. Durante esse período, a pressão não se limitava apenas ao campo dos esportes. O governo suíço interligava as negociações esportivas a outras frentes estratégicas – inclusive à compra de aviões militares, nas quais a Fiat desempenhava um papel importante – e às discussões no âmbito do GATT, reforçando a ideia de que a cronometragem esportiva era parte de um contexto mais amplo de prestígio e influência internacional.

O papel decisivo nesse processo ficou a cargo de Nello Celio, chefe do Departamento Federal de Finanças e Alfândega. Com uma vasta rede de contatos, especialmente no meio empresarial italiano, Celio conseguiu articular uma pressão que culminou na confirmação de Omega e Longines como os cronometristas oficiais da Universíada de Turim. Essa vitória representou não apenas um revés para a Seiko, mas também a concretização do movimento de unificação das marcas suíças para enfrentar, de forma conjunta, as ameaças externas.


A Fundação da Swiss Timing e a Nova Era da Cronometragem

O clímax da disputa ocorreu com os preparativos para os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Inicialmente, tanto Omega quanto Longines continuavam disputando o contrato – mas, com o passar do tempo, a Omega acabou se retirando. Oficialmente, a justificativa foi a necessidade de concentrar esforços em promoções ligadas à exploração espacial; na verdade, o recuo refletiu os conflitos internos e as divergências persistentes com a FH e com a Longines. Com a saída da Omega, a Longines, contando com o apoio decisivo dos diplomatas suíços e com a parceria estratégica com a empresa alemã Junghans, conquistou o contrato para os Jogos de Munique.

Esse episódio, repleto de intrigas, disputas internas e intensas negociações – onde foram empregadas estratégias que iam desde o envio de presentes a ameaças formais e o uso de canais diplomáticos – serviu como catalisador para o encerramento das rivalidades históricas. Em 3 de julho de 1972, a assinatura, pela Longines e Omega, do ato de fundação da Swiss Timing, selou o fim de uma era de competição destrutiva e marcou o início de uma nova fase na cronometragem esportiva, que consolidou o poder da indústria relojoeira suíça.

Na cronometragem esportiva, para além dos números e dos equipamentos, o tempo passou a ser medido também em termos de influência política, alianças comerciais e, sobretudo, da capacidade de mobilizar os instrumentos do poder estatal em defesa da imagem e do mercado internacional dos relógios suíços.

Bibliografia

  • A Journey in Time, The Remarkable Story of Seiko
  • Omega: Great Olympic Moments in Time
  • A Question of Prestige in the Watch Industry ”Swiss Diplomacy and Sports Timing (1964-1970), por Quentin Tonnerre

Fotografia de Otto Mayer por TopFoto