Uma visita ao Observatório de Greenwich
por Flávio Maia
O Astrônomo Real deverá “dedicar-se com o maior cuidado e diligência para retificar as tabelas de movimentos dos astros nos céus e o local das estrelas fixas, para encontrar a tão desejada longitude, com o fim de aperfeiçoar a arte da navegação”.
Rei Charles II
O início
Através dos séculos, os marinheiros navegaram pelos mares sem o conhecimento da longitude, a posição leste-oeste na Terra. Freqüentemente, as viagens terminavam em desastre, pois os navios batiam em ilhas e rochas que estavam em locais inesperados. Com o intuito de contornar tais problemas, os navegadores seguiam rotas conhecidas. Isso, porém, não significava uma viagem segura, pois os Piratas também utilizavam tais caminhos.
Com a descoberta do Novo Mundo e o aumento impressionante do fluxo de carga nas rotas marítimas tradicionais, a busca por um meio viável para determinar a longitude se tornou a prioridade nacional de vários impérios marítimos, dentre os quais a Inglaterra.
Em 1674, o Rei Charles II da Inglaterra ouviu dizer que a longitude poderia ser determinada através da observação dos astros no céu, como se a abóbada celeste funcionasse como um grande relógio.
Charles II, então, perguntou ao astrônomo John Flamsteed (foto ao lado) sobre a possibilidade de o referido método ser usado para determinar a longitude.
Flamsteed respondeu a Charles II que a proposta era completamente inviável, considerando-se os conhecimentos astronômicos da época.
Segundo ele, o único meio para contornar a situação seria a construção de um observatório, com o fim de aperfeiçoar as tabelas celestes existentes.
Charles II, assim, nomeou Flamsteed como o seu primeiro Astrônomo Real e autorizou a construção do observatório. Determinou apenas que os custos da obra não ultrapassassem a quantia de 500 libras.
Em 10 de julho de 1676, Flamsteed e dois ajudantes se mudaram para o observatório, que custou aos cofres da Inglaterra a quantia de 520 libras.
A sala em forma de octógono
Flamsteed iniciou suas observações com o auxílio de telescópios refratores instalados na “Sala Estelar” ou “Sala Octógono”, como atualmente é chamada. Precisava, inicialmente, determinar se a Terra girava em um compasso regular. Para isso, utilizou dois relógios de pêndulo fabricados por Thomas Tompion, também instalados na sala.
Em 1676, Flamsteed conseguiu comprovar que a Terra girava em um compasso constante. Criou, também, a fórmula da equação do tempo.
Ressalte-se que apenas na década de 1930, com o advento do relógio a quartzo, irregularidades no movimento de rotação da Terra foram verificadas.
A Lei da Longitude, 1714.
Apesar dos avanços obtidos com o funcionamento do Observatório de Greenwich, um meio prático para determinação da longitude ainda não havia sido descoberto. Os naufrágios e atos de pirataria, no entanto, continuavam a ocorrer.
No dia 22 de outubro de 1707, uma esquadra britânica comandada pelo Almirante Sir Clowdisley Shovell seguia para a Inglaterra após vitoriosos combates contra os franceses em Gibraltar. O consenso dizia que a esquadra estava a oeste da “Ilha de Oussant”. Qual não foi a surpresa dos marinheiros ao se depararem com as “Ilhas Scilly”, em posição completamente diversa da que imaginavam estar.
A nau-capitânia “Association” foi a primeira a bater nas “Ilhas Scilly”, seguida pelos navios “Eagle” e “Romney”. 1647 marinheiros perderam suas vidas nesse naufrágio. Apenas 26 se salvaram…
O Parlamento Britânico respondeu aos anseios da Armada e população instituindo a “Comissão da Longitude”. Ofereceu, ainda, um prêmio de 20.000 libras – equivalente a mais de 12 milhões de dólares na cotação atual – a quem conseguisse criar um método para determinação da longitude no mar com um erro máximo de meio grau (se o método possibilitasse a indicação da longitude com um erro de dois terços de grau, o prêmio seria de 15.000 libras; um grau, 10.000 libras).
O prêmio atraiu não apenas a comunidade científica mundial, mas um sem número de charlatões. Um dos embusteiros propôs a absurda utilização de um pó com propriedades mágicas para determinar a longitude. A sugestão era que cachorros fossem machucados com uma faca e colocados em navios da frota inglesa. Todos os dias, nos locais de partida dos navios, as facas seriam polvilhadas com o “Pó da Simpatia”, que imediatamente ocasionaria dor nos cachorros embarcados, a milhares de quilômetros de distância, fazendo-os latir. Quando os marinheiros ouvissem os latidos dos cachorros, saberiam que alguém havia colocado o “Pó da Simpatia” sobre a faca, num horário previamente acordado. Saberiam, portanto, o horário no local de onde haviam partido, com base nos latidos dos cachorros. A Comissão, evidentemente, não se impressionou. Mas, afinal, por que os marinheiros precisavam saber a hora exata do local de partida para determinar a longitude?
Os cientistas, desde Galileu, já haviam determinado que a solução ideal para o problema da longitude era a criação de um mecanismo ou método que permitisse ao marinheiro saber qual a distância existente, em termos de tempo, entre o navio e um ponto previamente conhecido. Isso porque a Terra completa uma rotação a cada 24 horas e tem 360 graus de circunferência; cada hora de diferença entre o ponto previamente conhecido e o horário do local onde o navio se encontra equivale a 15 graus de longitude (360 graus divididos por 24 horas, igual a uma hora, ou 15 graus de longitude).
Os marinheiros, portanto, só precisavam conhecer a hora exata no navio, algo facilmente obtido a partir da observação do zênite do Sol, e compará-la com o relógio embarcado, que marcaria o horário do local de partida. Cada hora de diferença entre o horário real obtido através da observação do Sol e aquele marcado no relógio corresponderia a 15 graus de longitude.
Um relógio, para atingir os parâmetros indicados pela Lei da Longitude, não poderia variar sua marcha diária em mais do que 3 segundos. Na época, porém, não existiam relógios suficientemente precisos a esse ponto. Excelentes relógios de pêndulo da época variavam aproximadamente 1 minuto ao dia! E, mesmo que fosse possível atingir o patamar de precisão necessário em um relógio de pêndulo, ele não funcionaria adequadamente em um navio, porque exposto às brutais mudanças de temperatura existentes nas viagens, além do balanço do navio.
Os maiores cientistas da época, então, asseguraram que o problema da longitude só seria solucionado por astrônomos, através da utilização da abóbada celeste como um grande relógio. Foram essas as palavras de Issac Newton:
“Um (método) é pela utilização de um relógio que mantenha o tempo com exatidão. Porém, em virtude da movimentação do navio, da variação do calor e frio, umidade e secura, e as diferenças da gravidade em diferentes latitudes, um relógio como este ainda não foi feito. E não parece que será…”
Newton não podia estar mais equivocado.
John Harrison: o homem que descobriu a longitude.
“John Harrison nasceu em 1693, filho de um carpinteiro. Aos 20 anos de idade, ele já tinha aprendido a arte da relojoaria e, quando o Prêmio da Longitude foi anunciado, Harrison tinha certeza de que seus relógios poderiam ganhá-lo.
Em 1730, após quatro anos de estudos intensos, ele formulou um projeto para o seu primeiro relógio marítimo. Com seu projeto, saiu de sua casa, em Lincolnshire, e dirigiu-se a Greenwich para se aconselhar com Edmond Halley, que era o Astrônomo Real na época. Halley o recebeu amistosamente e o apresentou ao maior relojoeiro da época, George Graham. Graham ficou entusiasmado como os planos de Harrison e, inclusive, ofereceu-lhe dinheiro para fabricar o relógio.
Harrison gastou os seis anos seguintes construindo seu marcador de tempo, agora conhecido como “H1” (foto ao lado). Ele então levou o marcador de tempo a Graham, em Londres, que conseguiu mostrá-lo à comunidade científica. O relógio rapidamente se tornou uma celebridade, tendo vários cronistas da época dito ser ele uma das grandes maravilhas da era moderna. Nos seus primeiros testes no mar, o relógio funcionou espetacularmente. A Comissão da Longitude ficou impressionada, mas Harrison sentiu que podia melhorar a performance do H1 e convenceu a comissão a lhe adiantar 250 libras, para começar a fabricação do H2.
Harrison imediatamente começou a trabalhar no H2, mas rapidamente percebeu que a máquina continha algumas deficiências de projeto. Então, ele começou uma terceira versão, o H3. Durante 19 anos ele obsessivamente o construiu e reconstruiu, com o apoio financeiro da Comissão da Longitude, que, diga-se de passagem, estava começando a perder a paciência e a confiança de que Harrison algum dia produziria o tão esperado marcador de tempo marítimo.
O divisor de águas ocorreu em 1753, quando Harrison contratou um relojoeiro para fazer um pequeno relógio de bolso baseado num projeto de sua autoria, com o fim de testar a precisão de seus grandes marcadores de tempo.
Assim que Harrison testou o relógio, ele percebeu que havia passado os últimos 27 anos no caminho errado. Um pequeno relógio, com um oscilador de alta freqüência, podia ser um marcador de tempo mais estável do que grandes relógios marítimos seriam” (Excerto de texto traduzido do folheto “A Guide to The Royal Observatory Greenwich. The Story of Time and Space).
Harrison, assim, mais uma vez pediu fundos à Comissão da Longitude para fabricar seu quarto relógio. A Comissão da Longitude, principalmente em virtude da influência de Nevyl Maskelyne (foto ao lado), o Astrônomo Real da época, estava mais interessada em outros meios para determinação da longitude. A astronomia, é certo, havia avançado muito e Maskelyne era ferrenho defensor do método das distâncias lunares para determinação da longitude. Com esse método, praticamente desenvolvido por Maskelyne, o marinheiro era capaz de determinar o horário em Greenwich através da observação das estrelas (não sem antes realizar centenas de cálculos, que demoravam várias horas.).
Harrison, de qualquer modo, construiu seu relógio e conseguiu que ele fosse testado em uma viagem. A sua performance foi três vezes melhor do que os parâmetros determinados pela “Lei da Longitude”.
A Comissão da Longitude, no entanto, recusou-se a pagar Harrison. Determinou, alterando as regras do jogo, que os segredos do seu relógio fossem revelados a outro relojoeiro, que faria uma cópia do mesmo; obrigou-o a fabricar outros dois relógios idênticos; confiscaram todos os seus relógios, sob determinação de Maskelyne, para que ele não tencionasse vendê-los para países rivais.
Harrison, humilhado, iniciou a fabricação do quinto relógio, o H5.
Terminada a sua fabricação, Harrison se dirigiu à Comissão para que o relógio fosse submetido aos testes que lhe possibilitariam ganhar o prêmio da longitude. A Comissão, porém, negou este e outros pedidos feitos por Harrison.
Harrison, desesperado, velho, cansado e com a certeza de que não viveria tempo suficiente para fabricar outra cópia do relógio, suplicou ao Rei George III para que ele em pessoa testasse o relógio.
O relógio, então, foi levado ao observatório particular do Rei, em Kew, e submetido a um teste de 10 semanas, ocasião em que apresentou uma variação diária menor do que um terço de segundo.
Mesmo assim a Comissão da Longitude não pagou o prêmio a Harrison. George III, então, apelou ao Parlamento para que um prêmio financeiro por serviços prestados lhe fosse pago. Finalmente, com a graça real, Harrison recebeu 8.750 libras pela construção dos seus relógios.
Rumo ao Observatório de Greenwich
A história do homem de parca instrução, filho de um carpinteiro, que lutou contra todas as adversidades, mas alcançou seu objetivo, fascinou-me. Talvez por isso tenha eleito John Harrison como verdadeiro ídolo. Quando li pela primeira vez um livro sobre sua vida, a aclamada obra Longitude, de Dava Sobel, passava por um período particularmente difícil. Sentia-me perdido e com medo de não alcançar a meta que almejava: um emprego e a conseqüente possibilidade de “caminhar com minhas próprias pernas”.
A lição ensinada por John Harrison? Nunca desistir, apesar de todos os percalços do caminho. Não desisti e prometi visitar seu memorial algum dia. Em Julho de 2005, pisei nos gramados do Parque de Greenwich.
O meio mais rápido e barato de chegar ao Observatório de Greenwich era através dos trens urbanos de Londres. Dada a vinculação do local com a história naval britânica, optei pelo meio mais lento, mas historicamente mais interessante, o barco. A viagem demorou uma hora e quinze minutos do píer de Westminster até o observatório. No percurso, pude observar locais históricos de Londres, como a “Tower Bridge”, Torre de Londres e o Parlamento.
Quando o barco se aproximava de Greenwich, notei o porta-aviões usado na Guerra das Malvinas, o “HMS Invencible”, ancorado em um píer. Nenhuma surpresa, pois o Rio Tâmisa é usado como ancoradouro da Armada há séculos.
Cheguei, então, a Greenwich, local inscrito pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade, desde 1997. Ele é formado pelo “Old Royal Naval College”, “The Queen’s House”, “National Maritime Museum e Royal Observatory”, “Greenwich Royal Park”, “The Ranger’s House” e o centro histórico da cidade.
Visitei o “National Maritime Museum”, que possui uma coleção bastante interessante, que remete às histórias da Inglaterra como grande potência naval. Neste museu, o artefato de relojoaria que me chamou a atenção foi o relógio “Kendall 1”, cópia do “H4” fabricado por Larcum Kendall em 1769, a pedido da Comissão da Longitude. Foi o cronômetro utilizado pelo capitão Cook em sua segunda viagem.
Meu objetivo, porém, era ir ao Observatório, para onde segui após passear no Museu Naval Britânico.
Logo na entrada do Observatório, deparei-me com o relógio Shepherd, responsável, juntamente com a bola vermelha existente no mastro instalado na “Flamsteed House”, por distribuir o horário de Greenwich ao público. O relógio elétrico foi inaugurado em 1852 pelo Astrônomo Real Sir George Biddell Airy.
Os artefatos existentes no observatório são belíssimos, como astrolábios, sextantes, grandes telescópios, etc. Os grandes relojoeiros da época estão representados através dos seus relógios. Há modelos fabricados por Thomas Mudge, Tompion, Kendall, George Graham, John Arnold, Thomas Earnshaw, dentre outros.
O ponto alto da visita, porém, era a “Galeria Harrison”. Quando vi os relógios de Harrison na galeria, três deles em perfeito funcionamento (o H4 é mantido parado, pois utiliza lubrificação, ao contrário dos demais), imaginei ter encontrado o famoso relojoeiro em pessoa. Engoli seco algumas vezes tentando conter a emoção, mas não consegui: chorei por minutos a fio enquanto observava a construção das máquinas.
Naquele momento, a história de Harrison passou rapidamente pela minha cabeça. Seus desafios, desapontamentos, tristeza, etc. Lembrei-me também dos meus desafios e pensei: “Agradeço por estar aqui”.
Bibliografia:
The Illustrated Longitude: The True Story of a Lone Genius Who Solved the Greatest Scientific Problem of His Time
Maritime Greenwich, A World Heritage Site: The Official Guide
A Guide to The Royal Observatory Greenwich: The Story of Time and Space
Fotografia do “Octogon Room” por National Maritime Museum; John Harrison e H1 da obra “The Quest for Longitude”; Parque de Greenwich e portão de entrada pelo autor.