O fantástico calibre 45 da Seiko
por
Flávio Maia, maio de 2025.
Navegava casualmente pelo Instagram quando decidi explorar com mais atenção o perfil de um relojoeiro independente chinês chamado Logan (Kuan) Rao — alguém cujo trabalho passei a admirar nos últimos tempos. O que me chamou a atenção não foi apenas sua capacidade técnica, mas também a ousadia de trilhar caminhos bastante distintos dos seguidos pelos suíços. Recentemente, ele desenvolveu um novo tipo de escapamento, e tudo em sua abordagem parece indicar um pensamento original, de quem não se contenta em repetir fórmulas preconcebidas.
Enquanto lia suas postagens, percebi que ele coleciona movimentos de relógios. Não me surpreendeu: para quem projeta mecanismos do zero, examinar criações passadas é quase obrigatório. Mas uma imagem, em particular, surpreendeu-me: o movimento Calibre 45 da Seiko, encaixado em uma caixa plástica transparente. A legenda do post dizia o seguinte:
“A Seiko relançou recentemente o modelo 45GS, alegando que a versão moderna preserva o desenho original da caixa ao mesmo tempo em que oferece um movimento superior. Como projetista de mecanismos, acho essa afirmação difícil de acreditar. Na minha visão, o Calibre 45 original é simplesmente O MELHOR movimento que a Seiko já criou. Talvez represente até mesmo o auge de toda a indústria relojoeira japonesa. Cal. 45 é completamente distinto de qualquer coisa feita no Ocidente e pode até causar estranhamento à primeira vista. Mas, se você se der ao trabalho de decifrar a engenharia e a lógica por trás dele, cada detalhe se revela razoável e eficaz.”
Em um comentário abaixo, ele reforçava: “explicar todo o brilhantismo desse movimento exigiria uma tese de doutorado”.

Diante de uma afirmação tão enfática, feita por um relojoeiro de alta capacidade técnica, fiquei intrigado. O que teria esse calibre a ponto de despertar tamanho entusiasmo? Fui atrás das respostas, e a investigação levou-me aos bastidores da Seiko nas décadas anteriores à Segunda Guerra Mundial. A história é longa e fascinante…

A criação da Daini Seikosha e Suwa Seikosha: a competição como motor de inovação
Em meados da década de 1930, o Japão vivia uma transição decisiva. A política de autossuficiência econômica, impulsionada pelo militarismo crescente, começou a moldar profundamente setores estratégicos da indústria — e a relojoaria não seria exceção. A Hattori & Co., controladora da Seikosha, já era a maior fabricante de relógios do país, mas enfrentava desafios técnicos, estratégicos e logísticos. A morte de seu fundador, Kintaro Hattori, em 1934, acelerou mudanças internas. Seus filhos, Genzo, Shoji e Takesaburo, tomaram as rédeas com uma postura pragmática e expansiva, alinhando-se às exigências do novo tempo.
Com a eclosão da guerra contra a China em 1937 e as restrições cada vez maiores à importação de bens de consumo — entre eles, relógios suíços —, a produção nacional tornou-se vital. Nesse contexto, a Hattori & Co. criou uma nova entidade: Daini Seikosha, a “Segunda Seikosha”, com sede em Kameido, no leste de Tóquio. A nova fábrica nasceu para absorver e expandir a produção de relógios de pulso, liberando a Seikosha original para se concentrar em relógios de parede, despertadores e, cada vez mais, armamentos.
A decisão de fundar a Daini foi tomada não apenas por razões operacionais. Segundo documentos e análises históricas, tratava-se de uma estratégia de mitigação de riscos — uma forma de espalhar ativos produtivos para evitar que bombardeios ou crises localizadas destruíssem toda a capacidade da empresa. Mas havia algo mais sofisticado no horizonte: ao dar autonomia jurídica e organizacional à nova fábrica, o grupo Hattori estava plantando a semente de um modelo inédito — a competição interna entre empresas do mesmo grupo.
A autonomia da Daini era relativa. Ela vendia toda sua produção à Hattori & Co., que controlava a distribuição e as vendas. Mas, internamente, Daini desenvolvia seus próprios calibres, contratava engenheiros, treinava técnicos e criava seus próprios processos. Shoji Hattori, o segundo filho do fundador, liderava a nova companhia com a missão de torná-la tecnicamente superior — não apenas à concorrência externa, mas também à “irmã mais velha” Seikosha.
Com o agravamento da guerra e os bombardeios cada vez mais intensos sobre Tóquio, foi necessário descentralizar ainda mais. A partir de 1942, equipamentos, máquinas e parte da produção da Daini foram enviados para a região montanhosa de Suwa, em Nagano. Inicialmente concebida como uma “fábrica de evacuação”, a planta de produção de Suwa logo se mostrou promissora — tanto em capacidade técnica quanto em independência de pensamento.
Ali, a Daini passou a colaborar com uma empresa local chamada Daiwa Kogyo, fundada naquele mesmo ano de 1942 por Hisao Yamazaki. A Daiwa era uma pequena fábrica especializada em componentes metálicos de precisão, produzindo peças para instrumentos ópticos e, cada vez mais, para relógios. Incentivada por Shoji Hattori, a Daiwa nasceu para dar suporte à Daini e rapidamente se tornou peça-chave na manutenção da produção relojoeira fora da capital. Era, em essência, uma oficina de micromecânica — o tipo de expertise que faltava em muitas regiões do Japão. A cooperação entre a Daini e a Daiwa foi tão bem-sucedida que, após o fim da guerra, tornou-se evidente o potencial daquela unidade fabril descentralizada.
Em 1959, essa sinergia culminou na fusão da unidade de Suwa da Daini com a Daiwa Kogyo, resultando na fundação da Suwa Seikosha como empresa independente. É fundamental entender que a Suwa não foi apenas uma “filial no interior”: ela nasceu com cultura técnica própria, enraizada na tradição de precisão mecânica que Yamazaki havia iniciado, agora ampliada com maquinário e conhecimento trazidos da Daini.

A coexistência de Daini e Suwa Seikosha se consolidou como um modelo de “competição coordenada”: ambas pertenciam ao mesmo grupo, vendiam via a mesma rede (Hattori & Co.), mas competiam entre si em design, precisão, inovação e processos. As razões para essa estrutura, segundo estudiosos e relatos internos, vão além da eficiência industrial. Em um Japão do pós-guerra desconfiado de monopólios e ávido por inovação, a Seiko — como o conglomerado passaria a ser conhecido — percebeu que uma competição saudável entre empresas-irmãs poderia ser o motor que a colocaria à frente da relojoaria suíça.

Essa rivalidade ganhou contornos mais evidentes no início dos anos 1950. Enquanto Daini trabalhava no desenvolvimento de calibres mais confiáveis, a Suwa investia em novos materiais, engenharia de produção e eficiência. O modelo Marvel, criado pela Suwa Seikosha em 1956, foi um divisor de águas. Em resposta, Daini lançou o Cronos e, posteriormente, calibres mais finos e sofisticados. Era uma corrida não apenas por desempenho, mas por prestígio técnico. O ápice dessa competição foi a criação, em paralelo, de dois relógios de alto padrão: o Grand Seiko (1960), produzido pela Suwa, e o King Seiko, lançado pouco depois pela Daini — ambos com o objetivo de rivalizar com os melhores suíços.

O sistema funcionava. Ao evitar a concentração total de decisões, o grupo Seiko mantinha sua estrutura ágil e inovadora. A rivalidade interna incentivava excelência sem comprometer a entrada em mercados. As empresas partilhavam patentes mediante royalties internos, trocavam aprendizados, mas seguiam trajetórias próprias. Se uma fracassava num projeto, a outra podia compensar. Se ambas acertavam, o grupo ganhava em dobro.
No centro disso tudo estava a figura de Shoji Hattori, presidente do grupo por quase três décadas. Seu estilo patriarcal de liderança, amparado pela autoridade simbólica de ser filho do fundador, garantia coesão e disciplina. Mesmo sem uma holding formal até os anos 1970, o grupo funcionava como uma unidade: Hattori & Co. cuidava das vendas e da coordenação, enquanto Daini e Suwa disputavam a vanguarda técnica. Posteriormente, a Seikosha também ganharia autonomia, especializada em relógios de parede e despertadores.
Esse sistema — descentralizado na produção, centralizado na estratégia — deu à Seiko a vantagem que nenhuma marca suíça possuía: duas fábricas concorrentes sob um mesmo teto. Essa estrutura se manteria até os anos 1980, quando as fusões e reestruturações começaram a redesenhar o mapa da indústria relojoeira mundial. Mas naquele momento, o que Seiko havia criado era mais que uma fábrica ou uma marca — era uma cultura de rivalidade produtiva que moldaria o futuro da relojoaria japonesa.
A Seiko nas competições de cronometria
A jornada da Seiko nas competições internacionais de cronometria tem suas raízes nos concursos domésticos japoneses. A partir de 1950, o Instituto Central de Inspeção de Relógios do Japão, subordinado ao Ministério da Indústria e Comércio Internacional, começou a realizar competições nacionais de cronometria para estimular o desenvolvimento da indústria relojoeira local após a Segunda Guerra Mundial. Estas competições domésticas seguiam parâmetros semelhantes aos das competições suíças, embora com padrões inicialmente menos rigorosos, servindo como um valioso campo de treinamento para os fabricantes japoneses aprimorarem suas habilidades técnicas.
Em 1963, após mais de uma década desenvolvendo expertise através das competições nacionais, a Seiko sentiu-se pronta para um desafio maior. Daini Tsunoda, um dos líderes técnicos da empresa, expressou o sentimento que impulsionou esta decisão: “Estávamos curiosos para ver como nossos melhores relógios se comparariam aos melhores do mundo. Era hora de nos testarmos no palco internacional.” Esta foi uma decisão ousada, pois as competições de observatório eram dominadas por fabricantes suíços há décadas, e nenhuma empresa não-europeia jamais havia se destacado neste ambiente.
Para entender a importância dessas competições, é crucial compreender que elas não eram simples concursos, mas sim o padrão que determinava a hierarquia na indústria relojoeira mundial. Os relógios submetidos eram testados rigorosamente durante semanas em diferentes posições e temperaturas, com desvios medidos em frações de segundo por dia. As exigências eram tão extremas que os cronômetros enviados para estas competições não eram produtos comerciais, mas sim criações especiais, muitas vezes feitas à mão, incorporando o que havia de mais avançado em tecnologia relojoeira.
A Seiko encarou este desafio com uma abordagem única, impulsionada pela competição interna entre suas duas divisões – Suwa Seikosha e Daini Seikosha. Estas unidades operavam com considerável autonomia e rivalizavam entre si pelo prestígio de produzir os melhores relógios. E isso era produtivo, pois ambas as divisões atacavam o mesmo problema com metodologias diferentes, efetivamente duplicando os esforços de pesquisa e desenvolvimento da empresa.
A frequência dos movimentos foi uma das primeiras áreas onde a Seiko inovou significativamente. Para entender por que isso é tão importante para a precisão, é necessário compreender dois princípios fundamentais. Primeiro, um balanço oscilando em alta frequência possui maior energia cinética, o que lhe confere maior estabilidade e resistência a perturbações externas. É como um giroscópio que, quanto mais rápido gira, mais resiste a mudanças em sua orientação. Segundo, e talvez mais importante, quando um choque ou perturbação inevitavelmente ocorre (uma simples mudança de posição do pulso, por exemplo), um balanço de alta frequência tem capacidade de recuperação muito mais rápida, retornando ao seu ritmo normal em menos tempo.
Além disso, qualquer erro momentâneo na taxa de oscilação fica “pulverizado” em um número maior de ciclos. Em um relógio com balanço tradicional operando a 18.000 alternâncias por hora (2,5 Hz), cada oscilação representa uma fatia maior do tempo total; portanto, qualquer variação em uma única oscilação tem maior impacto na precisão geral. Já em um balanço a 36.000 alternâncias por hora (5 Hz), o mesmo erro ficaria diluído em um número dobrado de ciclos, reduzindo seu impacto pela metade. É como ter uma média estatística com mais pontos de dados – naturalmente mais precisa e menos afetada por valores extremos.
Enquanto a maioria dos relógios suíços operava a 18.000 alternâncias por hora, os engenheiros da Seiko logo perceberam que aumentar esta frequência poderia melhorar drasticamente a precisão. Isto levou ao desenvolvimento de movimentos que operavam a 36.000 alternâncias por hora, e em protótipos experimentais, chegaram a incríveis 360.000 alternâncias por hora (50 Hz) – cem vezes mais rápido que um relógio convencional da época! Este aumento de frequência apresentava enormes desafios técnicos, pois lubrificantes tradicionais simplesmente não funcionavam nessas velocidades extremas, forçando a empresa a desenvolver óleos especiais que mantinham suas propriedades por mais tempo sob estas condições severas.
As limitações regulamentares das competições resultaram em algumas das características mais peculiares dos cronômetros de observatório da Seiko. Por exemplo, como havia restrições quanto ao volume máximo dos mecanismos de pulso, mas não quanto à forma, os engenheiros japoneses criaram o famoso “Seiko Batata” – um movimento com formato irregular que maximizava o espaço disponível dentro do limite cúbico permitido. Isso permitia a inclusão de um tambor de corda maior (para armazenar mais energia) e um balanço maior (para maior estabilidade). Quando os executivos questionaram os engenheiros sobre este design tão pouco convencional, a resposta foi direta e focada: este formato permitiria vencer.

A obsessão da Seiko com a precisão alcançou níveis espetaculares. A empresa descobriu que mesmo as mais sutis influências ambientais podiam afetar o desempenho dos cronômetros. Particularmente preocupante era o efeito dos campos magnéticos nos delicados componentes dos relógios. A variação natural do campo magnético terrestre era suficiente para influenciar os resultados nas competições, onde cada fração de segundo contava. Isto levou a medidas extraordinárias: os cronômetros eram transportados para a Suíça em contêineres especialmente projetados com blindagem magnética, e as rotas aéreas eram cuidadosamente planejadas para evitar áreas próximas aos polos magnéticos da Terra, onde estas variações são mais intensas.
Os engenheiros da Seiko também desenvolveram o Permalloy, um material com propriedades antimagnéticas superiores, para uso nos componentes críticos dos relógios. Mas as inovações não pararam por aí. Para combater os efeitos da oxidação nos delicados componentes metálicos – outro fator que podia afetar a precisão – eles criaram caixas especiais preenchidas com hidrogênio puro onde os movimentos eram inseridos. Como o hidrogênio substituía o oxigênio do ar, eliminava-se a possibilidade de oxidação das peças metálicas, preservando sua integridade e precisão ao longo do tempo.
No centro destes esforços técnicos estava um grupo notável de artesãos-reguladores, cuja habilidade em ajustar os relógios para a máxima precisão era quase lendária. Um deles descreveu o cronômetro como “uma coisa viva que respira e tem humor. Algumas vezes ele coopera, outras vezes não. Você precisa entender sua personalidade”. Esta visão ilustra a profunda conexão entre os reguladores e suas criações.
Entre estes artesãos extraordinários, destacava-se Kiyoko Nakayama, uma das poucas mulheres neste campo dominado por homens. Nakayama tornou-se uma figura quase mítica na Seiko, conhecida pela sua capacidade quase sobrenatural de perceber e corrigir as mais sutis imperfeições nos movimentos. Seu trabalho era tão excepcional que eventualmente recebeu o reconhecimento do governo japonês pelos serviços prestados à indústria nacional.

A rotina destes reguladores era extraordinária e exigia sacrifícios pessoais significativos. Trabalhavam em ambientes hermeticamente controlados, onde temperatura e umidade permaneciam constantes. Nos períodos que antecediam as competições, suas jornadas frequentemente se estendiam por 14 a 16 horas diárias, sem folgas nos finais de semana, privando-os do convívio familiar durante semanas. Um dos técnicos lembrou o espírito que permeava a equipe durante aqueles dias intensos: “Quando um de nós sugeria algo que poderia melhorar o desempenho, não importava o quão difícil fosse, a resposta do presidente Hattori era sempre a mesma: ‘Faça!’ Não havia discussão. Se existia uma possibilidade de melhorar, nós tentávamos, independentemente das dificuldades.”
O progresso da Seiko nas competições foi notável. Em 1964, seu primeiro ano na categoria de cronômetros de pulso, seus melhores relógios ficaram em posições modestas, por volta do 144º lugar – respeitável para estreantes, mas ainda muito distante da elite. Em apenas quatro anos, no entanto, o avanço foi impressionante. Em 1967, conseguiu colocar relógios entre os dez primeiros, um feito extraordinário para uma empresa não-europeia. Então, em 1968, veio o momento crítico: um cronômetro Seiko conquistou o segundo lugar na competição de Neuchâtel, chegando perigosamente perto do primeiro lugar. Foi um sinal claro de que o domínio suíço estava ameaçado.
Este ano marcou o auge do sucesso da Seiko nas competições de cronometria. A empresa não apenas conquistou a segunda posição, mas dominou várias categorias nas competições de Neuchâtel, ameaçando diretamente a supremacia suíça. Foi um choque para os suíços, que nunca haviam considerado seriamente a possibilidade de perder sua hegemonia histórica para fabricantes japoneses.
De forma notável – e alguns diriam, suspeita – as competições dos observatórios de Neuchâtel e Genebra foram suspensas logo após o triunfo japonês. A justificativa oficial foi a revolução do quartzo, que tornava obsoletas as competições de precisão para relógios mecânicos. Embora houvesse verdade nisso, muitos observadores notaram a coincidência temporal entre o sucesso da Seiko e o fim das competições.
Para a Seiko, no entanto, as competições já haviam cumprido seu propósito. A empresa havia provado sua excelência pelos padrões mais rigorosos do mundo e transformado sua reputação global. De fabricante de relógios medianos, a Seiko emergiu como uma potência relojoeira inovadora e de prestígio, capaz de desafiar e superar as melhores marcas da Suíça.
As tecnologias e técnicas desenvolvidas durante esta intensa busca pela precisão cronométrica não ficaram confinadas aos laboratórios. Elas encontraram seu caminho para os relógios comerciais da Seiko nas décadas seguintes, elevando a qualidade geral dos produtos da empresa. Como o Sr. Nakamura, um dos principais engenheiros envolvidos no projeto, refletiu anos depois: “As competições de observatório nos ensinaram a excelência. Aprendemos a dominar até os menores detalhes da fabricação de relógios. Este conhecimento tornou-se parte do DNA da Seiko e influenciou todos os relógios que produzimos desde então.”
Esta notável jornada da Seiko nas competições de cronometria representa não apenas um capítulo importante na história da empresa, mas também um momento definidor para a indústria relojoeira global – quando o centro de gravidade da excelência técnica começou a se deslocar do Ocidente para o Oriente, mudando para sempre o panorama da relojoaria mundial.
O calibre 45: a materialização da excelência técnica japonesa
Durante o período no qual a Seiko competia nos Concursos de Observatório de Neuchâtel e Genebra buscando prestígio internacional, ela também buscava aplicar as lições dessas competições para desenvolver calibres de alta precisão destinados ao uso diário por consumidores comuns. O calibre 45 representa o ápice dessa filosofia: alta precisão cronométrica não apenas para cronômetros de observatório, mas para relógios de pulso acessíveis ao público.

Introduzido em 1968 pela Daini Seikosha, o calibre 45 foi projetado sob a liderança do lendário engenheiro Tsuneya Nakamura, que já havia supervisionado o desenvolvimento dos calibres 44 e 61. O movimento foi concebido para equipar tanto os relógios Grand Seiko quanto King Seiko, representando o mais alto padrão da relojoaria japonesa da época. A Daini Seikosha utilizou o calibre na linha King Seiko 45KS a partir de 1968. A partir de 1969, a Suwa Seikosha também adotou o calibre para alguns modelos Grand Seiko, especialmente nas versões 45GS VFA (Very Fine Adjusted). Esta foi uma rara colaboração entre as duas divisões frequentemente concorrentes da Seiko, demonstrando a importância estratégica do calibre 45 para a empresa como um todo.
O calibre 45 operava a 36.000 vibrações por hora (10 batidas por segundo), o dobro da frequência padrão de 18.000 vph utilizada na maioria dos movimentos da época. Esta escolha não foi acidental, mas resultado direto das experiências nos concursos de observatório. Nas competições de cronometria, como já ressaltado, os técnicos da Seiko haviam descoberto que osciladores de alta frequência proporcionavam maior estabilidade cronométrica por dois motivos principais: primeiro, dividiam o tempo em fragmentos menores, reduzindo o impacto de perturbações externas; segundo, mantinham uma amplitude mais estável sob diferentes condições de uso. A adoção da alta frequência nos movimentos de produção em série demonstrava a confiança da Seiko em sua capacidade técnica. Enquanto fabricantes suíços como Girard-Perregaux começavam a explorar movimentos de alta frequência, a Seiko implementou essa tecnologia de forma mais abrangente em seus relógios de linha.
Uma característica técnica distintiva do calibre 45 era sua ponte de balanço com dois pontos de fixação. Diferentemente da típica ponte encontrada na maioria dos movimentos suíços, o calibre 45 apresentava uma estrutura que apoiava todo o conjunto do balanço em dois pontos, limitando significativamente o movimento lateral e proporcionando maior estabilidade. Embora a Seiko não tenha sido pioneira nesse conceito – o Cyma 454 de 1950, o Favre Leuba 250 de 1963 e o próprio Seiko 44 de 1967 já utilizavam soluções semelhantes – a implementação no calibre 45 foi particularmente refinada. O design proporcionava resistência superior a choques e mudanças posicionais, contribuindo para a excepcional precisão do movimento. Na ponte havia um sistema de regulagem de precisão, permitindo ajustes finos e estáveis que mantinham a calibração por períodos prolongados, uma característica essencial tanto para competições quanto para o uso diário.

A maior inovação do calibre 45 era seu trem de rodagem, com um design radicalmente diferente das abordagens ocidentais. Onde os movimentos suíços seguiam uma linhagem evolutiva quase linear desde os relógios de bolso, a Seiko repensou completamente a arquitetura do trem de força. A principal diferença estava na separação funcional entre os sistemas de indicação de tempo (ponteiro de minutos), da rodagem e escapamento. No calibre 45, a roda de centro minúscula estava diretamente acoplada ao tambor, funcionando independentemente do resto do trem de rodagem. Esta roda minúscula gira uma vez por hora e carrega o ponteiro dos minutos. Em seguida, o trem utiliza duas rodas intermediárias antes de iniciar o conjunto tradicional (terceira, quarta e roda de escape). Esta arquitetura oferecia duas vantagens cruciais.

Primeiro, a separação funcional entre ponteiros e escapamento: ao desacoplar o mecanismo dos ponteiros do trem principal, qualquer resistência encontrada pelos ponteiros não afetava o escapamento. Isso mantinha a estabilidade do oscilador mesmo quando os ponteiros encontravam fricção ou resistência, preservando a precisão cronométrica. Segundo, a reduzia o arrasto parasita: o trem de rodagem principal (que controla o escapamento) não precisava mover os ponteiros diretamente, eliminando o “arrasto parasita” que afeta movimentos convencionais. Isso resultava em maior eficiência energética e distribuição mais uniforme do torque ao longo da reserva de marcha. Esta arquitetura não apenas melhorou a precisão, mas também permitiu um layout mais compacto e uma melhor distribuição do torque – crucial para manter a estabilidade em alta frequência.

O calibre 45 incorporou 25 rubis, incluindo Diafix para os pontos críticos de lubrificação. O sistema Diafix, uma inovação japonesa, utilizava um rubi fixo a uma mola para manter o óleo próximo aos pivôs, melhorando a lubrificação a longo prazo e reduzindo o desgaste. Outra característica técnica notável era o mecanismo de mudança instantânea de data, que avançava precisamente à meia-noite, sem o período de transição gradual visto em muitos outros movimentos. Isso exigia engenharia de precisão para armazenar energia suficiente para o salto instantâneo sem afetar a amplitude do oscilador.

Embora o calibre 45 tenha sido desenvolvido para produção em massa e não especificamente para competições, sua excelência cronométrica era tal que exemplares selecionados foram enviados para certificação em observatórios. No final da década de 1960, a Seiko submeteu diversos cronômetros equipados com o calibre 45 para certificação no Observatório de Neuchâtel, como parte de um esforço maior que incluía centenas de cronômetros de diferentes calibres. Estes modelos certificados foram posteriormente comercializados como Grand Seiko VFA (Very Fine Adjusted), com garantia de precisão de +/-2 segundos por dia – um padrão excepcional para a época e ainda notável hoje. Os modelos VFA representavam o pináculo da produção da Seiko, com ajustes finais realizados manualmente pelos relojoeiros mais experientes da empresa. Cada unidade VFA passava por um processo de seleção e regulagem que podia durar semanas, resultando em relógios de precisão extraordinária.

Apesar de sua superioridade técnica, o calibre 45 não estava isento de desafios. A alta frequência de 36.000 vph, embora vantajosa para a precisão, causava maior desgaste nos componentes do escapamento e exigia lubrificação mais frequente. Sem manutenção adequada, os modelos podiam apresentar desgaste prematuro nas rodas e pivôs. A complexidade do trem de rodagem também tornava as intervenções de manutenção mais delicadas. Com o tempo, as peças de reposição se tornaram escassas, complicando ainda mais o serviço desses calibres.
O calibre 45 foi produzido até aproximadamente 1974-1975, quando a crise do quartzo começou a transformar fundamentalmente a indústria relojoeira. Ironicamente, foi a própria Seiko quem precipitou essa mudança ao lançar o Astron, o primeiro relógio de quartzo comercial, em 1969. Conforme os relógios de quartzo ganhavam popularidade por sua precisão superior e menor necessidade de manutenção, mesmo as maravilhas mecânicas como o calibre 45 perderam terreno comercial. A Seiko, pragmaticamente, redirecionou recursos para a nova tecnologia que ajudara a criar.
O calibre 45 permanece como um monumento da engenharia mecânica de precisão japonesa. Sua arquitetura única, soluções técnicas inovadoras e foco na precisão cronométrica demonstram como a Seiko transformou lições de competições especializadas em produtos excepcionais para o mercado consumidor. Hoje, colecionadores valorizam especialmente os Grand Seiko VFA e King Seiko equipados com este movimento, não apenas como relíquias históricas, mas como exemplos de um dos pontos mais altos da relojoaria mecânica japonesa antes da revolução do quartzo.
Embora o calibre 45 não tenha retornado à produção, seu espírito inovador vive nos modernos Grand Seiko mecânicos reintroduzidos a partir de 1998. Os recentes desenvolvimentos, como o escapamento Dual Impulse encontrado no calibre 9SA5 lançado em 2020, revelam a mesma busca pela perfeição cronométrica que motivou os engenheiros do calibre 45 há mais de cinco décadas. Este novo sistema, que combina elementos do escapamento de âncora suíço com o de impulso direto, oferece maior eficiência energética e estabilidade – preocupações que já eram centrais no design do calibre 45 com seu peculiar trem de rodagem. Assim, o calibre 45 não é apenas uma relíquia do passado, mas parte de uma linhagem técnica contínua que persiste nos modernos Grand Seiko, testemunhando a filosofia fundamental da Seiko: a busca pela precisão cronométrica não como um privilégio exclusivo, mas como um benefício acessível a todos.

- Agradeço a Martin Cockett por gentilmente ter cedido as fotografias do calibre 45 desmontado, fundamentais para que eu elaborasse uma teoria razoavelmente fundamentada dos motivos que levaram a Seiko a criar o sistema de rodagem não convencional. Seu artigo pode ser lido em https://adventuresinamateurwatchfettling.com/2016/01/03/rise-and-fall-the-king-seiko-4502-7001/
Fontes
- Industrial Development, Technology Transfer, and Global Competition. A history of the Japanese watch industry since 1850, de Pierre-Yves Donzé
- A Journey In Time. The Remarkable Story of Seiko, por John Goodall
- Seiko & the Neuchâtel Chronometer Competition, disponível em https://www.plus9time.com/seiko-the-neuchtel-chronometer-competition
- In-Depth: Seiko’s Legendary History in Observatory Chronometer Trials And the Grand Seiko Astronomical Observatory Chronometer, disponível em https://watchesbysjx.com/2013/06/explaining-seikos-legendary-history-in-swiss-chronometer-trials-with-live-pictures-of-its-landmark-astronomical-observatory-chronometer.html
- Collector Guide King Seiko Part 2 – Upping the Beat Rate, disponível em https://www.beyondthedial.com/post/king-seiko-collector-guide-part-2/