O Paradoxo do Luxo
por
Flávio Maia, junho de 2025.
Finalmente tive tempo de ler o mais recente estudo da Bain & Company sobre o mercado de luxo global, publicado em janeiro de 2025. O documento, intitulado “Luxury in Transition: Securing Future Growth”, trouxe uma série de constatações que, ainda que superficiais em relação ao setor relojoeiro, servem de ponto de partida para reflexões mais profundas sobre os rumos da indústria — especialmente se quisermos entender o paradoxo brasileiro, no qual o luxo parece crescer mesmo em meio a um cenário macroeconômico desfavorável.

Logo no início da leitura, lembrei-me imediatamente de dois vídeos que haviam me causado forte impressão. No primeiro, a especialista em negócios de luxo Cláudia Brandão destacava que o luxo moderno exige autenticidade, propósito e conexão emocional — que as marcas precisam ir além do status para construir experiências significativas. No segundo, o empresário Flávio Augusto dizia com franqueza que o relógio é um produto inútil funcionalmente, mas de altíssimo valor simbólico em mesas de negociação. E ia além: afirmou que, no Brasil, um Rolex seria luxo de entrada, enquanto verdadeiros marcadores de influência seriam relógios como os da Richard Mille. A fala causou polêmica entre aficionados, mas refletia com precisão a maneira como o luxo é percebido e instrumentalizado por uma fatia relevante do público local.
O estudo da Bain revela que, em 2023, cerca de 50 milhões de consumidores deixaram o mercado de luxo. Ao mesmo tempo, enfatiza-se uma tendência de “premiumização”, ou seja, uma concentração das marcas em produtos e experiências mais caras, voltadas para o segmento ultra high-net-worth. Esse movimento implica, inevitavelmente, uma redução da base de consumidores ativos, e parece contradizer outra previsão feita no mesmo documento: de que até 2030, aproximadamente 300 milhões de novos consumidores devem adentrar esse mercado.
Trata-se de uma tensão estrutural: como compatibilizar uma estratégia que privilegia poucos consumidores com um crescimento de mercado baseado na entrada de milhões de novos aspirantes? Ainda mais quando o próprio relatório afirma que a geração Z, embora aspiracional, procura produtos com storytelling autêntico e boa relação custo-benefício. Isso indica que uma estratégia de crescimento baseada exclusivamente nos ultra-ricos é insustentável no longo prazo, mesmo em mercados maduros.
No setor relojoeiro, esse dilema é ainda mais visível. Enquanto algumas marcas continuam investindo em acabamentos de ponta e técnicas artesanais, há uma tendência clara — e reconhecível por qualquer entusiasta com conhecimento técnico — de “atalhos” nos processos artesanais, substituídos por soluções industriais. O paradoxo aqui é claro: enquanto os preços sobem exponencialmente, a qualidade percebida, ao menos pelos conhecedores, dá sinais de declínio. A mensagem implícita parece ser a de maximização de margens às custas da substância do produto. Isso é perigoso, sobretudo em uma indústria cuja legitimidade histórica foi construída sobre o domínio artesanal e o virtuosismo técnico.
No Brasil, essas contradições se acentuam. Um Rolex Submariner — que pode ser adquirido no exterior por algo entre US$ 9.000 e US$ 10.000 — chega a custar quase US$ 20.000 em boutiques autorizadas no país. Em 2008, paguei por um Rolex Explorer algo como US$ 3.500, por um Milgauss em 2010 cerca de US$ 5.500, e por um GMT Master em 2012 algo em torno de US$ 6.500. Naquela época, esses valores ainda estavam ao alcance de profissionais de classe média alta com algum esforço. Hoje, os mesmos relógios custam mais do que muitos desses consumidores conseguem destinar ao consumo em vários meses, não só pelos aumentos de preço como desvalorização de nossa moeda — e deixaram de representar um luxo aspiracional para se tornarem símbolos de riqueza consolidada.
Apesar disso, o mesmo relatório aponta Brasil e México como mercados promissores para o luxo nos próximos anos. A análise, no entanto, falha em explicar as causas desse otimismo. No caso brasileiro, o número de ricos efetivamente cresce — mesmo em meio a um cenário de inflação, câmbio volátil, carga tributária agressiva e serviços públicos precários. Isso se explica, em parte, por uma concentração de renda que favorece um extrato muito pequeno da população, para quem a crise econômica, paradoxalmente, aumenta o poder de compra relativo.
Outro ponto relevante é a diferença entre experiências de luxo e consumo de produtos de luxo. O Brasil, de fato, pode ser atraente para o turista de alto poder aquisitivo. Um resort cinco estrelas em Trancoso, um helicóptero pousando em Paraty ou um restaurante estrelado em São Paulo podem custar menos que seus equivalentes em Paris, Milão ou Nova York. Esse turismo de luxo tem espaço para crescer. Mas comprar produtos de luxo aqui continua não fazendo sentido para consumidores estrangeiros ou mesmo para brasileiros com acesso ao exterior. O sistema tributário, a ausência de tax free e os preços inflacionados nas boutiques tornam qualquer aquisição local um gesto irracional do ponto de vista econômico.
E, no entanto, há uma demanda interna real. Como explicar isso? Um dos caminhos é reconhecer a função simbólica do luxo em países de consumo não maduro. Aqui, o produto não precisa ser entendido — basta ser reconhecido. E é nesse ponto que a fala de Flávio Augusto ajuda a ilustrar a dinâmica brasileira. Ele não está errado ao dizer que o relógio, enquanto objeto, perdeu sua função; mas enquanto símbolo, ganhou poder. Para boutiques e joalherias, é mais fácil atender a esse público. Afinal, ele compra sem fazer perguntas técnicas, não demanda legitimidade histórica e raramente rejeita um produto por falta de refinamento construtivo. Não é à toa que muitas lojas acabam negligenciando o colecionador entusiasta: ele é exigente, detalhista, conhece mais do que os próprios vendedores e, ao contrário do comprador impulsivo, não se deixa seduzir apenas pela vitrine. Para uma indústria obcecada por crescimento rápido e margens elevadas, ele representa um obstáculo às vendas.

E aqui volto à provocação de Cláudia Brandão: será que não é hora das marcas brasileiras, ou mesmo das representantes locais de grupos globais, começarem a construir narrativas com propósito, que combinem o desejo de projeção com a valorização de conteúdo? Será que o caminho mais seguro não é justamente integrar status com substância? Porque o cliente aspiracional ainda existe….

O desafio, portanto, é duplo. De um lado, o mercado precisa encontrar formas de reconectar-se com a base aspiracional, oferecendo produtos com legitimidade, autenticidade e preços razoáveis. Do outro, precisa resistir à tentação de se tornar um palco de ostentação vazio, no qual o produto importa menos do que sua função como símbolo de status.
Se a indústria relojoeira quiser sustentar-se a longo prazo, não poderá abrir mão dos fundamentos que a legitimaram: a excelência técnica, a inovação verdadeira e o respeito pela inteligência do consumidor. O crescimento pode vir dos ultra-ricos no curto prazo, mas só os apaixonados sustentam uma marca ao longo das décadas.
Fontes
Luxury in Transition: Securing Future Growth, disponível em https://www.bain.com/insights/luxury-in-transition-securing-future-growth/
Vídeo de Cláudia Brandão, disponível em https://www.instagram.com/p/DKXoA-kvm2K/
Vídeo de Flávio Augusto, disponível em https://www.instagram.com/p/DJ7swxPyJp7/