A Gramática do Design da Seiko
por
Flávio Maia, julho de 2025.
Há algum tempo, assisti a uma palestra promovida pela Horological Society of New York, intitulada “Japanese Sense of Aesthetics: The Preservation and Evolution of Grand Seiko Design”. O conferencista era Joseph Kirk, diretor de marketing da Grand Seiko Corporation of America e curador da marca. Sua fala se iniciou com um trecho que me chamou a atenção e que, até então, desconhecia completamente:
“Há quase um século, Junichiro Tanizaki escreveu o livro Em Louvor da Sombra. Na verdade, trata-se mais de um ensaio — ou até mesmo de uma espécie de carta de amor, poderíamos dizer. E o que ele faz ali é mostrar como o Japão se adaptou às sombras, como as integrou à vida cotidiana e, a partir disso, construiu uma estética fundamentada no conceito de luz e sombra. Um exemplo marcante é o washitsu, o quarto de tatame. Aos olhos ocidentais, esse ambiente pode parecer vazio ou despojado, mas a luz suave que preenche o cômodo, filtrada pelas portas de papel washi montadas sobre estruturas de madeira, permite que a iluminação ambiente crie uma sensação distinta de beleza. Tanizaki mudou-se de Tóquio para Kyoto — onde o tempo parecia passar mais devagar. Essa preservação das formas antigas acabou por inspirá-lo a acolher as sombras, a perceber como elas se fundem com a luz e a desenvolver uma nova percepção estética — ou melhor, a celebrar essa nova estética. O ensaio se concentra principalmente na arquitetura, mas também toca em temas como a culinária, os utensílios de laca e outros objetos do cotidiano. O que mais o encantava era a profundidade gerada pela sombra — algo que ele considerava único, distinto e realmente cheio de charme. E não era só Tanizaki que via isso: essa forma de enxergar continua viva na cultura japonesa como um todo. A luz e a sombra desempenham um papel central no Japão e em sua sensibilidade estética. Como eu dizia, isso está presente não apenas na vida diária, mas também na arquitetura e nos objetos do lar. Essa estética também é algo profundamente importante para a Grand Seiko. Esse louvor às sombras, esse entrelaçamento de luz e sombra, é algo essencial para a identidade da nossa marca.”

Por curiosidade, e nunca tendo ouvido falar dessa obra — tampouco a suposta conexão entre ela e os relógios da Seiko — resolvi procurá-la, ler com atenção e tirar minhas próprias conclusões.
Tanizaki escreveu Em Louvor da Sombra em 1933, no Japão do entreguerras, já mergulhado em tensões nacionalistas e em acelerada modernização industrial e militar. O autor não era um reacionário ou um nostálgico: tratava-se de um escritor sofisticado, com vasta produção anterior enaltecendo a modernidade, as artes ocidentais e a urbanidade. Mas nesta obra ele se detém naquilo que percebia estar se perdendo: uma sensibilidade estética japonesa baseada na penumbra, na profundidade, na ausência de brilho artificial e no valor da sugestão. A comparação com o Ocidente é recorrente. Ele critica o uso de metais polidos demais, a luz artificial intensa e a tentativa de inserir técnicas modernas em ambientes cuja beleza se assentava justamente na ausência de brilho e simplicidade visual.
O livro funciona como uma crítica à modernização agressiva do Japão, ao mesmo tempo em que defende os valores estéticos tradicionais ameaçados por esse processo. Quando Joseph Kirk, na palestra, associa a Seiko a esse universo, levanta uma hipótese: até que ponto essa visão de Tanizaki se manifesta nos relógios da marca? E mais: essa relação foi realmente planejada no início ou criada posteriormente para fins de marketing?
É fato que, até meados dos anos 1950, o design como linguagem própria era incipiente nas empresas japonesas de relógios. O foco predominante era funcional e técnico. Esse cenário começou a mudar com a atuação de Ren Tanaka, um dos primeiros designers industriais a integrar os quadros da Seiko, ainda no início daquela década. Ren Tanaka colaborou com a empresa no desenvolvimento do primeiro cronocomparador japonês; mais tarde, como diretor de projetos, teve papel central na consolidação da identidade visual da marca. Foi ele quem criou o atual logotipo da Seiko, inspirado na tipografia da American Airlines, além de definir o azul como cor institucional. Segundo ele próprio, seus três maiores legados para a empresa foram: o logotipo, a cor azul e o Seiko 5.

Foi também Ren Tanaka quem funcionou como mentor para Taro Tanaka — o verdadeiro arquiteto da virada estética da Seiko. Taro Tanaka formou-se pela Chiba School of Engineering in Industrial Design e ingressou na empresa nos anos 1960. Rapidamente, percebeu que os relógios japoneses, inclusive os da Seiko, eram visualmente inferiores aos suíços, especialmente nas vitrines iluminadas. As caixas eram de acabamento básico, o mostrador era plano, as transições de polimento eram ausentes. Tanaka propôs, inicialmente, abandonar o sistema de medidas em linhas, que engessava a criação, e adotar o milímetro. Isso permitiu maior liberdade de desenho.

Ele também participou da criação do Seiko 5, ao lado de Ren Tanaka, propondo mostradores com dia do mês e da semana — algo incomum na época — e uma coroa embutida, para ressaltar a estética limpa e valorizar o mecanismo de corda automática Magic Lever. Mas seu maior legado viria com o chamado “Seiko Style” — um conjunto de princípios formais que organizavam a linguagem estética da marca. Esses princípios ficaram conhecidos, mais tarde, como o “Grammar of Design” da Seiko. Não eram regras rígidas, mas diretrizes formais baseadas em contraste, reflexo, simetria e legibilidade.
A ideia nasceu após uma visita de rotina de Tanaka aos balcões de venda da Wako, loja de departamentos em Tóquio. Ao observar as vitrines, ele percebeu um contraste gritante. Em suas palavras: “Um dia, em 1962, fui aos balcões de vendas da Wako, como sempre fazia, e ao olhar para uma das vitrines vi muitos relógios brilhando intensamente. Depois, olhei para o outro lado e vi relógios com um brilho um tanto irregular: a diferença era evidente demais. Os relógios que brilhavam intensamente eram suíços, e os que tinham acabamento mais fosco eram da Seiko.”
Essa constatação o levou a formular um novo caminho para o design da marca, com ênfase no controle da luz e na percepção de qualidade. Embora na biografia oficial da Seiko Tanaka não cite explicitamente suas referências visuais, fontes posteriores indicam que ele se inspirou diretamente na indústria de lapidação de pedras preciosas. Assim como diamantes revelam sua beleza através de superfícies planas, ângulos precisos e reflexos limpos, Tanaka buscava aplicar esses mesmos princípios aos relógios, criando caixas que maximizassem o brilho controlado e transmitissem uma sensação de luxo e precisão.
Os princípios básicos definidos por Tanaka foram:
1) Superfícies planas e amplas para melhor refletividade;
2) Polimento espelhado impecável (Zaratsu) sem distorções;
3) Contornos e ângulos bem definidos para jogo de luz e sombra;
4) Mostradores altamente legíveis, com marcadores facetados e ponteiros largos.
Embora aplicável a toda Seiko, o Grammar of Design teve plena realização apenas nos modelos Grand Seiko e King Seiko, devido aos altos custos do acabamento — em especial do polimento Zaratsu. Este tipo de polimento exige habilidade manual e equipamentos específicos, com controle absoluto do ângulo de ataque da superfície contra o disco de polimento. O primeiro relógio a incorporar todos esses princípios foi o 44GS, lançado em 1967 — cinco anos após a formulação das regras. Tanaka ainda seria corresponsável pelo desenvolvimento do NW Luminous, primeiro composto luminescente não radioativo do mundo, que mais tarde daria origem ao LumiBrite (na Seiko) e ao Super-Luminova suíço (produzido sob licença pela Nemoto).

Diante de tudo isso, resta a questão: existe, de fato, um elo entre a estética proposta por Tanizaki e o Grammar of Design da Seiko? A resposta mais honesta é: sim, mas não originalmente. Trata-se de uma aproximação recente, construída a posteriori — como ferramenta narrativa e de marketing. Durante muito tempo, a Seiko sequer mencionava Em Louvor da Sombra em seus materiais. Foi apenas há alguns anos que a associação passou a ser feita de forma mais enfática.
O mesmo se aplica ao polimento Zaratsu. Por anos, repetiu-se a versão romântica de que se tratava de uma técnica ancestral japonesa usada no polimento de espadas. Mas hoje sabe-se que o termo vem da pronúncia japonesa da fabricante alemã de máquinas de polimento Gebr. Sallaz. A Seiko comprou essas máquinas nos anos 1950 e o nome se popularizou como “zaratsu” entre os artesãos. Não há nenhuma conexão histórica com o polimento de katanas. É uma bela história — mas não é verdadeira.
Isso, de qualquer forma, não desmerece a técnica. O polimento Zaratsu é, de fato, extremamente exigente e dominado por poucos profissionais. Há artesãos no Brasil que o praticam, inclusive relojoeiros independentes que desenvolveram suas próprias máquinas de lapidação. Mas não se trata de uma técnica milenar — e sim de uma adaptação japonesa de tecnologia europeia.
Por fim, o próprio Taro Tanaka nunca fez referência ao ensaio de Tanizaki. Seu foco era técnico e visual. Sua inspiração vinha da lapidação, da luz refletida com precisão, da nitidez dos contornos. Isso não significa que não haja afinidade com a estética japonesa mais ampla. Mas é uma afinidade que emerge da prática — não de uma filosofia preexistente.
Hoje, ao promover a Grand Seiko como uma marca que encarna a beleza da luz e da sombra, a empresa presta homenagem a sua terra natal, o Japão. Mas é preciso separar o marketing da história. Tanizaki escreveu sobre sombras porque temia perdê-las. Tanaka criou brilho porque percebia sua ausência.
Fontes:
Em louvor da sombra, por Junichiro Tanikaki
A Journey in Time. The Remarkable Story of Seiko, por John Goodall
Taro Tanaka’s mysterious mentor, disponível em https://www.wadokei.me/blog-en/le-mystrieux-mentor-de-taro-tanaka-f8fpl
Taro Tanaka beyond Grand Seiko, disponível em https://www.wadokei.me/blog-en/taro-tanaka-au-del-de-grand-seiko-xb4tz
Japanese Sense of Aesthetics: The Preservation and Evolution of Grand Seiko Design, by Joseph Kirk, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vC1q_x3siTQ&t=454s
Fotografia do Grand Seiko 44GS por Hodinkee; Taro Tanaka por Seiko; Ren Tanaka por The Horological International Correspondance