A odisseia do cronômetro marítimo K2
por
Flávio Maia, fevereiro de 2023
A Jornada de Larcum Kendall e a gênese do K2
Larcum Kendall nasceu em uma família protestante no dia 21 de setembro de 1719, em Charlbury, Oxfordshire. Em abril de 1735, tornou-se aprendiz de relojoeiro com John Jefferys, onde trabalhou por sete anos. Em seguida, abriu seu próprio negócio, especializando-se na construção de escapamentos para George Graham, que ficou muito impressionado com o projeto do primeiro cronômetro marítimo de John Harrison e até lhe emprestou dinheiro para sua fabricação.
Posteriormente, Kendall auxiliou Harrison na produção de seu quarto e mais famoso cronômetro (H4), que se mostrou uma solução prática para o problema da longitude. Não é de se estranhar que Kendall tenha comparecido à desmontagem e à explicação do funcionamento do H4 por Harrison, condição estabelecida pela Comissão da Longitude para o pagamento da metade do prêmio determinado em lei (cerca de 6 milhões de dólares na cotação atual).
Logo após, a Comissão determinou que um relojoeiro comprovasse a viabilidade de reproduzir o H4, de modo a produzi-lo em série. A escolha recaiu sobre Kendall, por quem Harrison nutria efetiva admiração. Após dois anos e meio de intenso trabalho, Kendall concluiu a réplica, denominada K1, que foi imediatamente colocada à disposição do Capitão Cook para sua viagem de circunavegação do globo. Recebeu, pelo trabalho, 450 libras (270 mil dólares na cotação atual).
Em 1769, questionado pela Comissão da Longitude se poderia treinar outros relojoeiros para construir novas réplicas, Kendall afirmou: “sou da opinião de que muitos anos se passarão (caso aconteça) até que um relógio do mesmo tipo que o de autoria do Sr. Harrison possa ser fabricado por 200 libras (120 mil dólares na cotação atual).” Contudo, Kendall sugeriu à Comissão que poderia fabricar uma versão simplificada do H4 por 200 libras. Em 1772, apresentou o K2, que, embora utilizasse o escapamento de Harrison e compensação para temperatura, omitia o mecanismo de força constante (“remontoire”).
O K2 na Expedição ao Polo Norte e na Guerra de Independência Americana
Com o aumento do comércio mundial, o Império Britânico decidiu investigar a viabilidade de uma ligação através do Polo Norte entre os oceanos Ártico e Pacífico. Assim, em 1773, o Almirantado disponibilizou dois navios, o Racehorse e o Carcass, e determinou que o capitão John Phipps comandasse uma expedição até o Polo. A Comissão da Longitude aproveitou a oportunidade para testar dois cronômetros de marinha: o K2, de Larcum Kendall, que foi instalado no Racehorse, e um modelo de John Arnold, embarcado no Carcass.
Após alguns meses navegando e a apenas 10° do Polo Norte, os navios acabaram presos na banquisa de gelo, em uma situação semelhante àquela que afundaria o Endurance, de Shackleton, décadas depois. Cercados pelo gelo, um marinheiro em início de carreira chamado Horatio Nelson, que adquiriria fama ao derrotar os franceses na Batalha de Trafalgar, desembarcou do Carcass e decidiu caçar um urso polar. Ao se deparar com o animal, Nelson disparou seu mosquete, que falhou. O urso, então, seguiu em sua direção para atacá-lo, sendo afastado apenas por um disparo de canhão de um dos navios. Enquanto isso, um ansioso capitão Phipps ordenava que mantimentos fossem empilhados no gelo, pois o abandono dos navios parecia inevitável. Por sorte, alguns dias depois, o vento começou a empurrar os bancos de gelo para o norte e os navios se desprenderam, conseguindo retornar a Londres. O K2, pela primeira vez, foi salvo de uma destruição que parecia certa.
Em 1775, logo após ser reajustado em Greenwich, o K2 foi instalado no navio de guerra Asia, sob o comando de George Vandeput, e seguiu para as Colônias Norte-Americanas para participar da Guerra da Independência. Enquanto realizava o bloqueio naval do Porto de Nova Iorque, rebeldes americanos lançaram três botes em chamas com explosivos contra o Asia. O ataque, no entanto, não foi bem-sucedido, pois os botes desviaram-se do alvo em virtude da correnteza. Na mesma semana, o primeiro submarino da história, o Turtle, foi usado como arma em uma tentativa de afundar o navio Eagle, que operava junto ao Asia. Por um golpe de sorte, o K2 escapava da destruição pela segunda vez.
Quando o capitão George Vandeput retornou a Londres, o K2 foi imediatamente levado ao Observatório de Greenwich para testes que duraram quatro anos. Então, em 1781, o relógio foi embarcado no navio Prince George, que rumava aos Estados Unidos para participar das operações da Guerra de Independência. O Astrônomo Real, Nevil Maskelyne, indicou seu assistente para acompanhar a missão e realizar medições de longitude com o cronômetro.
Em 1785, com o fim da guerra, o K2 foi instalado no navio Grampus, que tinha como objetivo a descoberta de um território na África onde escravos negros pudessem viver como pessoas livres. Nessas viagens, o relógio não enfrentou nenhum perigo. Em breve, porém, em uma expedição que tinha o singelo objetivo de transportar árvores frutíferas da Polinésia ao Caribe, o K2 faria parte de uma das histórias mais fantásticas da navegação…
A Incrível Viagem do Bounty e o Motim
Em 1787, o capitão William Bligh foi designado para contatar polinésios que já haviam se encontrado com o Capitão Cook, a fim de pedir-lhes mudas de fruta-pão e plantá-las no Caribe para fornecer alimento barato aos escravos que ali trabalhavam. Bligh já tinha experiência com um relógio de Kendall, o K1, pois havia participado das viagens de Cook a bordo do Resolution. Assim, o K2 foi instalado no navio Bounty, que buscaria chegar à Polinésia através do Cabo Horn. Se a travessia se mostrasse impossível, procederiam via Cabo da Boa Esperança. Como imediato, Bligh designou seu amigo Fletcher Christian, que já fora seu aprendiz.
O navio partiu em dezembro de 1787 e, em fevereiro de 1788, próximo do Cabo Horn, começou a enfrentar tempestades. Bligh, para desespero da tripulação, tentou a travessia até o mês de abril, quando, então, desistiu e determinou que um novo rumo fosse traçado para o Cabo da Boa Esperança. Em maio, uma tripulação desgastada finalmente avistou a Table Mountain, e o navio ancorou na Cidade do Cabo, onde permaneceu até julho. Finalmente, após mais três meses de navegação, o Bounty atingiu seu objetivo: Otaheite, o verdadeiro paraíso polinésio. Vários chefes tribais vieram a bordo, trocaram presentes e se lembraram de Bligh como integrante da expedição de Cook anos antes. O que poderia dar errado?
O Taiti realmente se mostrou um paraíso para os tripulantes do Bounty. O capitão Bligh inclusive comentou que “a intimidade entre nós e os nativos era tão ampla que não havia um tripulante que não possuísse seu `tyo´ ou amigo”. Inicialmente, os favores sexuais ocorreram através da troca por objetos, mas, com o tempo, surgiram relacionamentos amorosos genuínos entre taitianos e ingleses. Como o Bounty havia chegado atrasado ao seu destino, as mudas de frutas-pão ainda não estavam prontas, obrigando os estrangeiros a permanecerem na ilha por seis meses. Os tripulantes evidentemente não reclamaram, exceto Bligh, que temia que o excesso de liberalidade afrouxasse a disciplina da tripulação na perigosa viagem de retorno.
Durante a estadia, o imediato Fletcher Christian fez várias tatuagens polinésias em seu corpo, o que enfureceu Bligh. Além disso, três marinheiros, ao perceberem que o retorno ao mar estava próximo, tentaram desertar e fugiram para ilhas vizinhas, sendo punidos com chicotadas após serem capturados.
No dia 4 de abril de 1789, finalmente o Bounty zarpou do Taiti com sua carga de mudas de frutas-pão, e pouco depois a relação entre Bligh e Christian começou a se deteriorar: qualquer deslize do oficial era motivo para um ataque de raiva de Bligh. A gota d’água ocorreu três semanas depois de zarparem, quando Bligh, em mais um ataque de fúria, acusou publicamente Christian de ter subtraído três cocos do depósito do navio.
No dia 28 de abril, Christian e outros tripulantes invadiram a cabine de Bligh armados. O capitão, ainda de pijamas, foi acordado com tapas e amarrado. Christian bradou: “estou vivendo o inferno com você nos últimos meses!” Então, 23 amotinados isolaram o capitão e 18 leais a ele em um bote salva-vidas. Sabendo que a navegação seria impossível sem um relógio, Bligh tentou levar o K2 e um sextante para o bote, mas foi impedido. Deram-lhe apenas um quadrante. Enquanto o bote se afastava do Bounty, os amotinados xingavam seus ocupantes. Após 47 dias no mar e 6.700 km percorridos, em um dos exemplos mais fantásticos de navegação da história, Bligh conseguiu aportar o pequeno bote em uma colônia holandesa no Timor, expondo o motim à Coroa Britânica.
Fuga, Justiça e a Busca pelo Bounty
Após o motim, Fletcher Christian sabia que teria, pelo menos, um ano de prazo até que a Marinha enviasse alguém à sua caça. De fato, Bligh só conseguiu retornar à Inglaterra em março de 1790. Como havia prometido devolver o K2 ao fabricante após a viagem, uma de suas primeiras providências foi justificar sua perda ao Almirantado: “Sr., devo informá-lo que o relógio, cuja guarda foi confiada a mim a bordo do HMS Bounty, ficou neste barco, quando tomado do meu comando no motim de 28 de abril de 1789”.
Enquanto isso, Christian navegava o Bounty até o Taiti, onde o grupo de amotinados se dividiu: alguns ficaram na ilha, enquanto outros se juntaram a Christian para procurar um refúgio deserto onde não pudessem ser encontrados. Assim, oito amotinados, seis nativos e doze nativas decidiram acompanhar Christian nesta jornada. Após consultar as cartas náuticas que tinha, ele decidiu seguir até a ilha Pitcairn, que constava como não habitada na documentação. Para sua surpresa, demorou mais de dois meses para encontrá-la, uma vez que sua localização estava incorretamente registrada pela Marinha, a 200 milhas de sua posição verdadeira.
Após desembarcarem em Pitcairn, o grupo imediatamente incendiou o Bounty, para que seu refúgio não pudesse ser descoberto por outros navegadores que por acaso ali passassem.
Em março de 1791, a fragata Pandora, enviada para prender os amotinados, finalmente aportou no Taiti. Então, marinheiros britânicos capturaram 14 amotinados que ali haviam ficado, e a fragata zarpou novamente para procurar Christian e o restante do grupo nas ilhas próximas. Durante três meses, a Pandora aportou em diversas ilhas, sem sucesso. Seu capitão, assim, decidiu que era hora de voltar à Inglaterra. Na viagem de retorno, o navio bateu em uma barreira de corais e começou a afundar. Os 14 prisioneiros ainda estavam acorrentados, mas um dos marinheiros conseguiu lhes passar as chaves dos cadeados, e dez conseguiram se soltar. Ao final, 34 tripulantes e quatro prisioneiros morreram afogados. Os 99 sobreviventes dividiram-se em quatro botes salva-vidas e, sofrendo privações de fome e sede, dois meses depois finalmente conseguiram aportar no Timor.
Quando os amotinados capturados no Taiti finalmente chegaram à Inglaterra, foram imediatamente levados à Corte Marcial: quatro foram absolvidos e seis condenados à morte por enforcamento (três deles acabaram recebendo perdão do Rei). Depois, a opinião pública esqueceu o caso e a Marinha britânica desistiu de encontrar Fletcher Christian e os demais.
O Redescobrimento de Pitcairn e o Retorno do K2
Em 1807, 17 anos depois de o Bounty aportar nas ilhas Pitcairn, o capitão Mayhew Folger, no comando do Topaz, zarpou de New Bedford, EUA, para uma expedição de caça a focas e baleias. Após meses de frustração, Folger não encontrou nenhuma colônia desses animais, que na época já estavam ameaçados de extinção.
Em 1808, próximo da Nova Zelândia, resolveu dirigir-se a uma ilha que constava como desabitada nas cartas náuticas e, portanto, tinha a possibilidade de nunca ter sido visitada por um navio baleeiro: Pitcairn. Localizar a ilha se mostrou uma tarefa complicada, pois sua posição estava incorreta nas cartas náuticas. Quando finalmente chegou ao local, surpreendeu-se com sinal de fumaça. Não era a ilha desabitada? Logo depois, vislumbrou um grupo de três adolescentes remando um barco em sua direção. Eles perguntaram: “quem é você?” Folger explicou que era dos Estados Unidos, mas eles não sabiam onde ficava o país. Então, um dos adolescentes, conhecido por “Quinta-Feira”, disse: “conhece o Bounty?”
“Quinta-Feira”, que soube ser filho de Fletcher Christian, contou-lhe que logo após a chegada de seu pai e os amotinados na ilha, um deles ficou louco e se jogou de um penhasco; outro morreu de febre; quatro anos depois, os taitianos se revoltaram por ciúmes dos ingleses e mataram seis deles, deixando apenas um sobrevivente. Revoltadas, as mulheres na ilha aguardaram os taitianos dormirem e mataram todos. Restaram apenas oito ou nove mulheres, as crianças que ali haviam nascido e um inglês, que lhes ensinou a língua e a Palavra de Deus.
Folger permaneceu um dia na ilha e ficou impressionado com o grau de organização social da comunidade de cerca de 30 habitantes. Pouco antes de zarpar, os habitantes disseram que gostariam que ele aceitasse um presente. E Folger, com lágrimas nos olhos, recebeu o cronômetro K2 e embarcou no Topaz…
Quando o Capitão Folger zarpou de Pitcairn com o K2, imediatamente saiu à procura de um local para caçar baleias e focas. Para abastecer seu navio com provisões, seguiu para Juan Fernández, na costa do atual Chile, que, na época, era uma colônia espanhola. O bloqueio naval operado pela Inglaterra durante as Guerras Napoleônicas em curso diminuíra drasticamente o comércio das colônias, e Folger sabia que atos de pirataria poderiam ocorrer. Para se prevenir, pediu permissão para aportar ao governador de Juan Fernández, que não só a concedeu, como o convidou para almoçar em sua casa. Quando se aproximou da costa, porém, o Topaz foi alvejado por vários disparos de canhão, capturado pelos espanhóis e saqueado; o K2 foi então colocado sob guarda espanhola e levado ao continente.
Em 1840, 32 anos depois, a fragata britânica Calliope, sob o comando de Thomas Herbert, aportou em Valparaíso. Ao desembarcar, um certo Alexander Caldcleugh o contatou e disse-lhe que um criador de mulas havia comprado um relógio em Concepción décadas antes e o trouxera através dos Andes até Santiago, em uma viagem de milhares de quilômetros. O criador havia falecido recentemente, e sua viúva queria vender o relógio. Espantado, Herbert leu as inscrições no objeto: Larcum Kendall, London, AD 1771. Sabendo tratar-se do famoso cronômetro perdido, o comprou por 50 guineas e, então, zarpou em direção à China para tomar parte na 1ª Guerra do Ópio, onde chegou a bombardear fortes e desembarcar soldados.
Em 1843, ao retornar à Inglaterra como herói, Herbert doou o K2 ao museu do United Services Institution. Em 1963, quase 200 anos depois de sua fabricação, o K2 foi finalmente transferido para exposição no local onde tudo começou: o Observatório de Greenwich!
Em 2005, após ler a obra Longitude, de Dava Sobel, decidi que era o momento de colocar os pés no meridiano primo e ver os relógios fabricados por John Harrison. Após deixar as lágrimas rolarem em frente aos relógios, dirigi-me ao Museu Naval, onde deparei-me com o K2, uma pequena máquina do tempo, repositório de inúmeras aventuras…
Fotos por Royal Museum Greenwich, NC Wyeth, Royal Mail e Wikimedia
Bibliografia
Longitude, de Dava Sobel.
Kendall´s Longitude, de John Bendall.
The Marine Chronometer, de Rupert Gould.