Relógios Mecânicos
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Artigo | Curiosidades

Richard Mille, Dubois Depraz e a Construção Modular de Movimentos

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Flávio Maia, fevereiro de 2025.

A Dubois Depraz é um nome de peso na indústria relojoeira, um daqueles que, embora menos conhecidos pelo grande público, sustentam parte significativa da tradição e da inovação do setor. Fundada em 1901, a manufatura suíça se especializou na concepção e fabricação de módulos adicionais para movimentos-base, sendo responsável por fornecer complicações a algumas das marcas mais respeitadas do mundo. Seu papel na história da relojoaria inclui contribuições notáveis, como a participação na criação do calibre 11, um dos primeiros movimentos de cronógrafo automático do mundo, fruto do projeto 99, uma parceria entre Heuer, Breitling, Buren e a própria Dubois Depraz.

A construção modular de movimentos, por sua vez, é uma solução amplamente utilizada para adicionar complicações sem a necessidade de desenvolver um calibre completamente novo. Em um cronógrafo modular, o mecanismo de contagem do tempo base permanece intacto, e o módulo adicional, muitas vezes posicionado na parte superior do movimento, adiciona a funcionalidade do cronógrafo. Essa abordagem, embora funcional e mais flexível, é frequentemente considerada inferior à de um cronógrafo integrado, no qual todos os componentes são projetados como parte de uma única unidade, oferecendo maior refinamento técnico e eficiência operacional.

RICHARD MILLE: INOVAÇÃO E POSICIONAMENTO NO SEGMENTO DE ULTRALUXO

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A Richard Mille é uma marca que transcendeu a relojoaria tradicional para se firmar como um ícone de status e inovação. Desde sua fundação em 1999, a marca não apenas apresentou relógios tecnologicamente avançados, mas também criou um segmento próprio: o ultraluxo esportivo, com peças que frequentemente ultrapassam os preços de marcas como Patek Philippe e Audemars Piguet. Seu sucesso não se deve apenas à engenharia envolvida, mas ao modo como construiu sua imagem, associando-se a esportistas de elite, à Fórmula 1 e a um público extremamente seleto.

A grande questão, no entanto, surge quando se observa a construção de seus movimentos. Recentemente, assisti à desmontagem de um Richard Mille RM 011 Asia Edition, um cronógrafo flyback com calendário anual e big date às 12 horas, cujo valor de mercado gira em torno de 350 mil dólares. A arquitetura do movimento revelou algo intrigante: em vez de um cronógrafo integrado, o modelo utiliza um movimento-base fabricado pela Vaucher, amplamente modificado, acoplado a um módulo cronográfico da Dubois Depraz.

O PROBLEMA DO ACABAMENTO NOS COMPONENTES OCULTOS

O uso de módulos Dubois Depraz não é, em si, um problema. Como mencionado, a manufatura tem uma longa tradição e fornece componentes para algumas das mais respeitáveis casas relojoeiras. O ponto crítico está no acabamento – ou na falta dele. O módulo de cronógrafo utilizado no RM 011 não possui qualquer refinamento estético, consistindo em um conjunto de alavancas e molas de aço estampado, com custo de produção estimado em meros 500 dólares.

Outras marcas que utilizam módulos similares tomam medidas para elevar sua qualidade estética. A Audemars Piguet, por exemplo, equipa seus Royal Oak Offshore com módulos Depraz, mas promove um acabamento manual detalhado, com chanfrados nas alavancas, satinado a favor do grão e perlage nas platinas. Até mesmo a Omega, no Speedmaster Reduced – um relógio de cerca de 3 mil dólares no mercado secundário – aplica algum nível de acabamento ao módulo, tornando-o mais condizente com sua proposta de produto. Já no caso do Richard Mille RM 011, a ausência de refinamento estético é mascarada por duas placas anodizadas pretas, que ocultam o módulo.

O VALOR PERCEBIDO E A CONTRADIÇÃO NA RELOJOARIA DE LUXO

A questão central não é o uso de um módulo, mas a coerência entre o posicionamento da marca e a qualidade da execução. O mercado de relógios de luxo se sustenta sobre dois pilares principais: artesanato e inovação. O preço exorbitante de um Richard Mille não se justifica apenas pelos materiais de ponta ou pela engenharia de alta complexidade, mas também pela promessa de excelência em cada detalhe. Quando se observa que um módulo semelhante ao do RM 011 pode ser encontrado em um Omega de uma fração do preço e que a Audemars Piguet se preocupa em aprimorar sua versão, a discrepância se torna difícil de ignorar.

É evidente que o custo de produção é apenas um dos fatores que determinam o preço final de um relógio. Branding, exclusividade e design também desempenham papéis fundamentais. Contudo, a coerência entre a narrativa da marca e os componentes que a sustentam deveria ser inquestionável. No caso do RM 011, a impressão que fica é a de uma Ferrari com um motor de Fiesta 1.0 em seu interior – um desalinhamento que desafia a lógica do consumidor exigente e conhecedor.

Não há dúvidas que a Richard Mille redefiniu a relojoaria de luxo, trazendo inovação e uma identidade única ao mercado. No entanto, quando uma peça de 350 mil dólares apresenta um módulo de cronógrafo idêntico ao de relógios dezenas de vezes mais baratos, sem sequer um acabamento condizente com seu status, a proposta da marca se fragiliza. Em um setor que preza tanto pela tradição e pelo detalhismo, negligenciar aspectos técnicos sob a justificativa do design ou da exclusividade pode ser um risco – sobretudo quando se lida com consumidores que não apenas compram um relógio, mas buscam compreender sua mecânica e história.

Foto do módulo Depraz usado no AP Royal Oak Offshore por Quill & Pad Magazine; módulo Richard Mille por HappyWatch99 (Tik Tok).