Relógios Mecânicos
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Artigo | Curiosidades

La Chaux-de-Fonds: patrimônio cultural da humanidade

por Flávio Maia

O protestantismo e Genebra

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No início do século XVI, iniciou-se uma grande discussão teológica sobre os fundamentos da Igreja Católica. Há algum tempo essa vinha permitindo que pessoas doassem dinheiro com intuito de obter perdão e, consequentemente, assegurar sua entrada no “Reino dos Céus”.

A Igreja, assim, reuniu grupos de cobradores profissionais com o fim de vender indulgências. Desse modo, negava-se perdão aos pobres, que não tinham dinheiro suficiente para comprá-las.

No dia 31 de outubro de 1517, na véspera do Dia de Todos os Santos, o sacerdote do norte da Alemanha chamado Martinho Lutero afixou seus protestos quanto à venda de indulgências na porta da igreja do Castelo de Wittenberg.

O documento – chamado de “95 teses” – pretendia incitar uma ampla discussão sobre as indulgências e condenava os desvios morais da Igreja Católica.

Nas palavras de Geoffrey Blainey, a intenção de Lutero ficou bastante clara para aqueles que leram o manifesto: “por que os crentes deveriam ser penitentes, quando alguns vendedores ambulantes tentavam isentar as pessoas da necessidade de arrependimento em troca de algumas moedas?”

A recente invenção da imprensa permitiu que tais teses fossem copiadas e difundidas por toda a Europa. Lutero traduziu a Bíblia para o alemão e passou a defender o fim do monopólio da Igreja Católica sobre as Escrituras. Em pouco tempo várias Bíblias foram impressas e tornaram-se acessíveis a um sem número de pessoas.

Lutero não acreditava em ricas procissões, no poder de liderança do padre e na intermediação de santos para alcançar o Divino. Qualquer pessoa que lesse a Bíblia com fé podia alcançar o perdão. Lutero dizia que a “salvação estava não em fazer o bem, mas numa fé simples e abnegada em Deus”.

Os países tais quais conhecemos atualmente não existiam. Havia reinos unidos pela língua e a adoção ou não dos ideais protestantes dependia basicamente da vontade do governante. Já em 1533, com o crescimento do protestantismo na Europa, o Papa Clemente VII passou a pressionar o rei da França para que procedesse à “aniquilação da heresia Luterana e de outras seitas que ganham influência nesse reino”.

Em 1534, vários cartazes foram afixados em Paris por protestantes, criticando o modo como a missa era realizada pela Igreja Católica. A reação do rei Francisco I da França foi brutal: passou a perseguir os protestantes como hereges e queimá-los.

calvinoJoão Calvino (foto ao lado), protestante nascido no norte da França e educado em Paris, não esperou o pior: fugiu para Genebra que, naquela época, era uma República que via com bons olhos a reforma da Igreja.

A partir de 1550, Genebra passou por uma fase de grande crescimento demográfico ocasionado pela fuga dos protestantes franceses, com consequente expansão econômica.

Não estamos a afirmar que entre os protestantes houvesse um maior número de pessoas com melhor educação e tino para as artes e comércio.

Na verdade, uma pessoa não tão independente poderia abandonar suas convicções religiosas e simplesmente permanecer residindo em sua terra natal. Não seria perseguida como herege. Os indivíduos, no entanto, que possuiam força de vontade suficiente para manter suas convicções religiosas e, por isso, alteravam todo o curso de sua vida ao abandonar suas raízes normalmente tinham o caráter empreendedor introjetado em seu espírito.

A relação entre o protestantismo e o crescimento econômico foi analisada à exaustão por Max Weber na obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, cujo aprofundamento foge ao escopo do singelo ensaio. Basta dizer, porém, que segundo Max Weber, os ideais protestantes tiveram grande impacto no crescimento econômico da Europa e, principalmente, dos Estados Unidos da América.

Particulamente em Genebra, o crescimento econômico, sobretudo propiciado pela nascente “indústria” relojoeira, pode ser explicado por outro fato: os ideais protestantes não permitiam o enaltecimento do luxo. Joalheiros e ourives, assim, passaram a fabricar relógios ao invés de objetos para simples deleite. Afinal, segundo a ética protestante, o relógio era visto como algo útil.

No final do século XVI já havia relojoeiros em Genebra em número suficiente para criação de uma corporação de ofício, o que foi feito.

O Jura e o sistema de etablissage

Como ressaltamos no texto “The Worshipful Company of Clockmakers”, “com o rápido crescimento das cidades e, consequentemente, do comércio, surgiu intensa concorrência entre os diversos artesãos. Apareceram, então, as corporações de ofício, reuniões de artesãos dentro do mesmo ramo, com fim nitidamente protecionista. Organizados em uma corporação, os artesãos melhor defendiam seus interesses perante as autoridades. Ademais, determinavam a qualidade, quantidade e preço dos produtos, bem como o número de mestres existentes numa cidade, de modo a reduzir a concorrência. Finalmente, regulamentavam a divisão de trabalho da oficina, que meramente reproduzia o que já ocorria antes da guildas.

O rígido controle de qualidade imposto pelas corporações assegurava a produção de relógios excelentes. Em contrapartida, implicava em conservadorismo. Finalmente, havia limitações quanto ao número de companheiros que podiam ser mestres, tornando seus membros poucos ambiciosos.
É fato, porém, que nem sempre as corporações de ofício conseguiam impor suas regras, pois somente atuavam dentro dos limites da cidade. Relojoeiros e comerciantes podiam, portanto, trabalhar fora da cidade sem serem molestados. No interior da cidade, por sua vez, tornou-se cada vez maior o número de mestres e companheiros que adquiriam relógios de terceiros para suprir a demanda. O contrabando de relógios seguramente era uma atividade muito lucrativa…

O controle da guilda de Genebra, pois, começou a ser burlado pelos próprios artesãos, em virtude da lei da oferta e procura. A corporação não tinha como evitar contratações de pessoas fora da República.

Poucas pessoas fixavam residência no Jura suíço, em virtude do inverno rigoroso, cujas nevascas fechavam todas as estradas e traziam bastante solidão. A terra também era ruim, propícia apenas para a criação de gado.

Os criadores de gado, com a chegada do inverno, recolhiam-se às suas residências e buscavam outros afazeres com o intuito de aumentar a renda familiar. A fabricação de rendas pelas mulheres e crianças era a tarefa preferida.

Os genebrinos perceberam a existência dessas pessoas pobres e sem trabalho adequado durante o inverno e rapidamente as arregimentaram para o serviço relojoeiro. Ressalte-se, ademais, que nas famílias do Jura, todos podiam ser utilizados, principalmente crianças e mulheres, com suas mãos pequenas e não marcadas por calos, ideais para a construção das diminutas peças existentes em um relógio.

No início do século XVIII, pois, surgiu uma incipiente indústria nas montanhas suíças que faziam fronteira com a França. Inicialmente, os genebrinos relegaram aos fazendeiros a parte “suja” e de pouca remuneração da produção dos relógios. De qualquer modo, os valores auferidos por essas pessoas era muito maior do que a produção de renda ou criação de gado. Em algum tempo, famílias inteiras estavam envolvidas na cadeia de produção de relógios, relegando ao segundo plano seus afazeres tradicionais.

Na divisão de trabalho criada, competia aos habitantes do Jura a construção das peças simples do relógio. O projeto, acabamento e montagem das peças era feito em Genebra pelos mestres relojoeiros. Nessa cadeia, havia a figura do comerciante de peças, que fazia o contato entre os mestres e os “fazendeiros” que as construíam. Esse sistema tornou-se conhecido como etablissage e sempre marcou a indústria da Suíça, mesmo após a criação das grandes fábricas de relógios.

Como ressaltado por David Landes na obra “Revolution in Time”, nem mesmo a secular fabricação de renda resistiu à imperialista indústria relojoeira. “A relojoaria pagava mais; melhor, propiciava emprego para toda a família, já que a fabricação de rendas era vista como uma ocupação feminina”.

Em toda indústria, inclusive as atuais, no entanto, a fabricação dos bens é baseada em modismos. Os trabalhadores do Jura, portanto, inicialmente copiavam modelos ingleses e franceses: afinal, o mercado exigia relógios nos padrões desses locais. Ressalte-se, também, que integrados a uma cadeia de produção comandada por terceiros, os habitantes do Jura nunca haviam se especializado a ponto de conseguir projetar as peças do relógio, sobretudo seu movimento (o mecanismo completo do relógio que, sem acabamento, é conhecido por ébauche).

Um caminho sem volta, porém, estava traçado. As pequenas oficinas que apenas trabalhavam de forma independente dentro de uma cadeia de produção se tornaram maiores e estavam aptas a competir de igual para igual com Genebra.

Nessa época surgiu a lenda – eis que não existem documentos históricos confiáveis – de Daniel Jean Richard (foto abaixo), a figura do relojoeiro independente que se tornou mestre em todas as áreas da relojoaria e difundiu seus conhecimentos entre os habitantes das montanhas de Neuchâtel.

jean20richardDe acordo com Hélène Pasquier, ao citar Fréderic-Samuel Ostervald, “durante sua juventude, Daniel Jean Richard adquiriu técnicas básicas de relojoaria imitando e incorporando conhecimentos já existentes. Ele fez uma cópia idêntica de um relógio que lhe foi entregue por um viajante que passava pela região. Já adulto, o domínio das técnicas relojoeiras lhe permitiu fazer vários tipos de relógios. Ele projetou e construiu ferramentas para mecanizar a produção. Ao mesmo tempo, ele não hesitou em transmitir seus projetos e conhecimentos aos seus contemporâneos. Então, ele ensinou aos seus companheiros o que sabia sobre ourivesaria. Ele também abriu uma oficina onde colegas serviam como aprendizes por vários meses, em diversas áreas. No final da sua vida, Jean Richard havia transmitido seu conhecimento a futuras gerações, ensinando aos seus cinco filhos a arte da relojoaria. Ele também difundiu seu conhecimento a outras regiões, deixando a vila de La Sagne para se estabelecer em Le Locle, onde morreu em 1741, aos 76 anos de idade”.

A história de Jean Richard é vista como lenda porque mesmo na sua época muitos protestantes já praticavam a arte da relojoaria. Jean Richard provavelmente não foi o primeiro a querer dar o passo à frente com o estabelecimento de sua própria oficina nas montanhas, responsável não apenas por fabricar peças simples, mas projetar relógios.

Na verdade, o caminho natural de uma oficina era o crescimento. Os “fazendeiros” das montanhas suíças, portanto, em pouco tempo já estavam projetando relógios fantásticos por conta própria, não meras cópias (vide, por exemplo, Abraham Louis Perrelet, nascido em Neuchâtel, que em 1770, inventou o relógio automático).

Os “fazendeiros” suíços, é certo, tornaram-se efetivos competidores dos genebrinos, eis que a intensa divisão de trabalho e salários mais baixos lhes possibilitavam oferecer ao mercado produtos muito mais baratos. Além disso, a qualidade de vida da região melhorou, pois agora existia trabalho para todos.

Frederic-japyUma mudança radical na produção de relógios, no entanto, estava prestes a ocorrer, através do intelecto de Frédéric Japy de Beaucourt (foto ao lado). Após alguns anos como aprendiz em La Chaux-de-Fonds, em 1771 Japy instalou uma oficina em Neuchâtel para fabricação de ébauches. Em 1776, Japy projetou e mandou construir diversas máquinas para produção em massa de peças, abandonando a construção artesanal outrora comum nas montanhas do Jura. Em dez anos ele estava produzindo cerca de 100.000 movimentos por ano, que inundavam a indústria a preços baixíssimos! Sua fábrica, porém, situava-se no lado francês do Jura, e os suíços tomaram providências construindo suas próprias manufaturas, iniciando já em 1793 (Fontainemelon).

A indústria do Jura, finalmente, ultrapassou a de Genebra. A. Pleghart, citado por David Landes, afirmou sobre Genebra:

“Nas montanhas de Neuchâtel os funcionários trabalham mais e as mulheres e crianças são de grande importância. Para ser honesto, o custo de vida é maior lá, pois a terra é pobre e tudo tem que ser trazido de outros locais. A real vantagem consiste na coordenação de toda cadeia de produção. Para cada tipo de relógio eles usam os mesmos movimentos de Japy. As partes móveis são sempre negligenciadas nas mercadorias vindas de Savóia, razão pela qual precisam de acabamento em Genebra. Por essa razão, no Jura, as partes e acessórios são facilmente compatíveis e, o que é melhor, com o preço mais baixo possível; como tudo é planejado antes, toda peça é fabricada igual e custa proporcionalmente menos do que nossos movimentos, que nós constantemente temos que modificar. Eles fazem uma infinita gama de caixas para servir no mesmo tamanho de movimento, sabendo de antemão que qualquer relógio de determinado calibre irá se encaixar. O mesmo pode ser dito a respeito de mostradores, ponteiros, molas e outras coisas, tudo custando menos do que peças fora de um padrão. O trabalhador sabe quando coloca as mãos em um ébauche o que tem que fazer. Ele não perde tempo ajustando e encaixando; ele trabalha mais corretamente e isso é muito melhor. O mesmo pode ser dito a respeito dos trabalhadores para quem repassa os movimentos, que sem mais divisão de trabalho do que nós, mas feita de forma diferente, fabricam melhores relógios por menos dinheiro…”

A produção, no entanto, continuou fragmentada em toda indústria, nos moldes do sistema de etablissage.

Jacques David, diretor técnico da Longines, no entanto, ao visitar a Exposição Mundial da Filadélfia em 1876, percebeu que os americanos haviam abandonado o sistema de divisão de trabalho entre vários produtores e verticalizado a fabricação de relógios em plantas únicas.

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Longines (foto ao lado) e Zenith, após o relatório de David, verticalizaram quase que totalmente suas produções sob uma mesma planta industrial, com o intuito de alcançar maior intercâmbio entre as peças do relógio e melhor qualidade. No entanto, os suíços adaptaram a verticalização à sua realidade, e o sistema de etablissage nunca desapareceu. A fábrica totalmente integrada, é certo, nunca poderia alcançar a especialização necessária para a construção de um relógio.

La Chaux-de-Fonds e Le Locle

Em meados do século XIX, um terço da população de La Chaux-de-Fonds, de aproximadamente 4000 pessoas, trabalhava na indústria relojoeira. No início do século XX, metade dos relógios do mundo era produzido lá.

No ano de 2007, em uma população de 37000 pessoas, pelo menos 6000 trabalhavam na indústria. Nas suas ruas ainda podem ser encontrados prédios que abrigam as fábricas da Girard-Perregaux, TAG Heuer, Ebel, Corum, Greubel Forsey, etc. Em Le Locle, a apenas alguns quilômetros de distância, encontram-se Tissot, Audemars Piguet (Renaud et Papi), Ulysse Nardin, Montblanc, Cyma, Zenith e várias outras. Nas ruas de ambas as cidades podemos ver prédios que outrora abrigaram as fábricas da Angelus, Moser e Cie, Tavannes, Breitling, Eberhard, etc.

O que levou Karl Marx a descrever La Chaux-de-Fonds como “uma gigantesca fábrica de relógios” em sua famosa obra “O Capital”, de 1867?

La Chaux-de-Fonds era, até meados do século XV, apenas uma pequena vila perto da residência de verão do príncipe de Neuchâtel. Com a chegada da relojoaria, os ferreiros de lá perceberam rapidamente uma oportunidade de diversificação. Essa história, porém, nada difere da anteriormente contada a respeito do desenvolvimento da relojoaria em todas as vilas do Jura.

Na verdade, em 1781, a Corporação dos Ferreiros, Pedreiros e Marceneiros de Neuchâtel obrigou os relojoeiros dessa cidade a se integrarem. Isso fatalmente atrasou o desenvolvimento da relojoaria na cidade de Neuchâtel, ao contrário de La Chaux-de-Fonds e Le Locle. Nessas cidades, o comércio podia ser feito por qualquer pessoa, mesmo estrangeiros. Augustin Angelini, morador de Neuchâtel, afirmou sobre o tema, ainda em 1799:

Em La Chaux-de-Fonds e Le Locle, “qualquer estrangeiro, após pagar uma pequena taxa, pode se estabelecer e praticar seu negócio como lhe aprouver. Tal liberdade transformou essas cidades, em pouco tempo, tão populosas e prósperas quanto a própria Neuchâtel”.

Os incêndios em La Chaux-de-Fonds e Le Locle e a transformação urbanística

La Chaux-de-Fonds era uma vila com quantidade razoável de artesãos, muitos deles relojoeiros, e seguia a disposição medieval de casas construídas de forma desordenada pelo terreno.

Na madrugada do dia 5 de maio de 1794, um incêndio começou na chaminé de um tal de Daniel Grisard, rapidamente se alastrando em virtude de aproximadamente 70 quilos de pólvora que eram guardados no quarto adjacente. Como as casas eram de madeira e construídas próximas uma das outras, rapidamente o fogo consumiu 70 delas. Dezenas de famílias ficaram desabrigadas.

O mesmo aconteceu em Le Locle, no dia 24 de abril de 1833, quando o centro da vila ardeu em chamas e 515 pessoas ficaram sem teto.

Nos dois casos, o material de construção das casas (madeira) e a insuficiente largura das ruas foram determinantes para que os incêndios se alastrassem.

Logo após os incêndios, a comunidade começou a planejar a reconstrução das cidades. Com o fim de evitar novos incêndios, regulamentos deveriam ser adotados, sobretudo obrigando os habitantes a construírem suas casas com tijolos, granito e telhas. Os ideais neoclássicos estavam em voga, e as ruas deveriam ser em linha reta, as casas com fachadas semelhantes e infraestrutura para melhoria das condições de higiene.

La Chaux-de-Fonds, já em 1794, estava sendo reconstruída de acordo com os planos de Moise Perret-Gentil, com ruas bem mais largas se encontrando em esquinas, casas feitas de material não combustível e a existência de uma praça central, tudo para impedir a propagação de incêndios.

O crescimento da cidade no início do século XIX, em virtude da expansão da relojoaria, no entanto, demandava novas residências e uma radical alteração no plano de Perret-Gentil.

planoEm 1835, logo após o incêndio em Le Locle, Charles-Henri Junod tornou-se responsável pela criação do plano de reconstrução dessa cidade e de ampliação de La Chaux-de-Fonds. Esse projeto marca o início da moderna La Chaux-de-Fonds, tal qual conhecemos hoje (foto ao lado).

Basicamente, Junod adotou o sistema “gradeado” de disposição de prédios. Ao longo de avenidas centrais largas seriam construídas ruas paralelas de forma repetitiva. O centro de La Chaux-de-Fonds foi mantido de forma irregular, pois não havia sido queimado no incêndio de 1794.

Em Le Locle, o centro da vila tinha sido destruído pelo incêndio, razão pela qual Junod pode criar uma praça. Manteve, no entanto, o alinhamento das ruas paralelas a uma avenida central, também seguindo um padrão quase como um “tabuleiro de xadrez”.

O esquema “gradeado” das cidades simbolizava a ordem que se buscava na época, bem como evitar a propagação de incêndios. No entanto, o principal aspecto dos planos é que foram instituídos em virtude do crescimento populacional ocasionado por uma indústria, a relojoeira.

No final do século XIX, muitos passaram a criticar o planejamento em forma de “tabuleiro de xadrez” das cidades de La Chaux-de-Fonds e Le Locle. Diziam que o formato das cidades era monótono e repetitivo (aliás, crítica ainda feita a respeito de Brasília/DF).

John Ruskin asseverou sobre a expansão de Edimburgo, ainda no século XIX (mas cujas palavras servem para La Chaux-de-Fonds), que só via “tabuleiros de xadrez, mais tabuleiros de xadrez, sempre tabuleiros de xadrez, um deserto de tabuleiros de xadrez…esses tabuleiros de xadrez não são prisões para o corpo, mas sepulturas para a alma”.

Não é preciso dizer que, algumas décadas depois, as virtudes da organização “em tabuleiros de xadrez” também foram ressaltadas, pois se afastavam do desordenado urbanismo medieval, pouco higiênico por natureza. Com avenidas largas, a circulação de ar era maior, assim como a luminosidade. Em La Chaux-de-Fonds, em virtude da indústria relojoeira, a quantidade de luz incidente nos prédios era fundamental, pois o trabalho dependia disso.

Nas ruas de La Chaux-de-Fonds e Le Locle

lachauxLa Chaux de FondsLa Chaux-de-Fonds (foto ao lado) e Le Locle não são destinos turísticos típicos. Em virtude do planejamento urbanístico, são consideradas cidades feias entre as européias, sobretudo na Suíça. Afinal, estamos acostumados com a visão bucólica da Suíça, com suas montanhas ocupadas por fazendas e cidades medievais.

Conhecendo a história de ambas as cidades, no entanto, é fácil se impressionar. Todas as ruas e avenidas seguem um padrão quase que milimetricamente traçado. Efetivamente simbolizam a ordem. É fácil imaginar, caminhando pelas ruas das cidades, os relojoeiros trabalhando em cada um dos prédios, com seu formato retangular característico, janelões para melhor disposição da luminosidade e fachadas voltadas para o Sol. Não há cidades na Europa com tais características. O legado relojoeiro está presente no ar que se respira e, inclusive, em museus criados especialmente para abrigar belíssimas coleções.

Em La Chaux-de-Fonds, a alguns minutos de caminhada da estação de trem, localiza-se o Museu Internacional de Relojoaria, cujo atual prédio – praticamente subterrâneo – foi inaugurado em 1974. Entre os 3000 relógios em exposição, podemos citar belíssimos exemplos de Ferdinand Berthoud (principalmente o cronômetro marítimo n. 12, mostrado na foto abaixo), Daniel Jean Richard, Pierre Jaquet-Droz, Matthias Hipp e outros. Ademais, é possível adquirir o relógio comemorativo do museu, com calendário anual, fabricado pelo relojoeiro independente Paul Gerber (preço em 2010: 5000 francos).

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Em Le Locle situa-se o Museu de Relojoaria do Château des Monts (foto abaixo), que tem grande ênfase na interatividade: todas as coleções possuem filmes e animações explicativos em 3D. A belíssima mansão, construída no estilo Luís XVI, fica em uma região de antigas fazendas, onde inclusive pode ser vista a residência onde morou Jean Richard.

Nas palavras oficiais do governo da Suíça:

“Não há nenhum lugar no mundo onde a relojoaria tenha deixado traços indeléveis no desenvolvimento urbano, dentro de um perímetro claramente definido e preservado. A Confederação Suíça – consciente do significado desse legado – registrou as duas cidades como sítios de importância nacional desde 1984. Em dezembro de 2004, o governo Suíço deu um passo à frente ao submeter a candidatura das duas cidades como integrantes da lista do Patrimônio Cultural da Humanidade, em virtude do rico legado da relojoaria na sua estrutura urbana. Os locais incluídos na lista do Patrimônio Cultural são de valor inestimável para a humanidade. Representam a diversidade cultural e natural de nosso planeta. A candidatura foi oficialmente submetida pela Suíça em dezembro de 2007 e a decisão tomada pela UNESCO em 2009”.

As cidades foram incluídas e passaram a figurar na lista de 890 locais e bens indicados pela UNESCO como de interesseMuseu de Le Locle cultural de toda humanidade (10 estão na Suíça. Dados de 2009).

La Chaux-de-Fonds e Le Locle representam a cultura de um povo, intimamente ligada a uma determinada indústria; são cidades que foram feitas pelos relojoeiros e para relojoeiros. La Chaux-de-Fonds e Le Locle: patrimônios culturais da humanidade.

Bibliografia

– The World of Watches: history, technology and industry, de Lucien F. Trueb;
– Uma breve história do mundo, de Geoffrey Blainey;
– Revolution in Time: clocks and the making of the modern world, de David S. Landes;
– Le Locle and watchmaking, guia oficial da cidade;
– La Chaux-de-Fonds e Le Locle: watchmaking town planning, guias oficiais das cidades;
– The Territory of Neuchâtel and its horological heritage, coletânea de textos de diversos autores;
– Watchtime Magazine: the magazine of fine watches, June 2009;
– Diversos textos da enciclopédia virtual Wikipedia;
– The Worshipful Company of Clockmakers, por Flávio Maia, disponível em www.relogiosmecanicos.com.br

Créditos

Fotografias de João Calvino, Jean Richard, Japy e plano de La Chaux-de-Fonds por wikipedia.org; vista aérea de La Chaux-de-Fonds por Gérard Benoit; lago Léman em Genebra, fábrica da Longines, cronômetro marítimo de Berthoud e Museu de Relojoaria de Le Locle pelo autor.

Agradecimentos

Agradeço ao povo suíço, que com organização e educação incomparáveis, acolheu-me de braços abertos nessa viagem; ao vendedor de bilhetes de trem da estação de Genebra (o “Reguinha”), aeromoças da Swiss International Airlines e garçonete de um restaurante em Le Sentier, que com singelas e espontâneas manifestações de comportamento humano, mostraram-me o sentido da expressão “precisão suíça”; aos curadores dos museus que visitei: mesmo com pressa, responderam às minhas perguntas sem vacilar; ao ídolo John Harrison, representado em uma exposição sobre cronômetros em Le Locle: mais uma vez levou-me às lágrimas. Finalmente, agradeço ao meu companheiro de viagem, o amigo Igor Schütz, que também “navega” por esse planeta em busca de histórias daquela que considero a arte mais fantástica criada pelo ser humano: a relojoaria. Valeu cara!