No coração da relojoaria alemã
por Flávio Maia
Dresden, a “Florença do Elba”
Em meados do século X, os eslavos criaram uma pequena vila – chamada Drezdzány – nas margens do rio Elba. Na mesma época, tribos saxãs procurando terras férteis se mudaram para regiões eslavas. No ano 929, Henrique I da Germânia subjugou os eslavos e construiu uma fortaleza em uma colina do Elba, denominando-a Meissen.
Em 1270, o conde Henrique, o Ilustre, de Meissen, resolveu mudar-se para Drezdzány, que já se tornava conhecida como Dresden. O local tinha terras férteis, clima agradável e depósitos de minerais. No início do século XVI, após várias batalhas com os tchecos da Boêmia, os alemães erigiram Dresden como capital da Saxônia, residência de um dos princípes eleitores, integrante do comitê responsável por indicar cada imperador Sacro Romano.
A partir deste momento, Dresden se desenvolveu tanto como capital artística quanto política. Na mesma época, Martinho Lutero iniciou o movimento da Reforma e o príncipe eleitor da Saxônia tornou-se seu protetor. Na Alemanha, por sua vez, as inúmeras cortes patrocinavam as artes, competindo entre si, inclusive pela criação dos aparatos científicos mais belos e avançados. Isso não era diferente em Dresden.
Nas cortes alemãs havia mercado para produtos caros, como os relógios mecânicos que, reza a lenda, foram criados na região. De fato, a evidência documentada mais antiga sobre a fabricação de um relógio mecânico portátil pode ser lida no texto de Johannes Cocleus, Cosmographia Pomponii, de 1512. Concleus refere-se a um tal Peter Henlein (1479 – 1542) de Nuremberg, como pessoa capaz de fazer relógios que impressionam os mais talentosos matémáticos, funcionam sem o auxílio de qualquer peso e podem ser carregados numa bolsa.
Os mais antigos relógios portáteis existentes em museus efetivamente foram fabricados no sul da Alemanha. O British Museum, por exemplo, tem em sua coleção modelos de meados do século XVI. É possível, assim, que o relógio mecânico portátil tenha realmente sido inventado por Peter Henlein, de Nuremberg. A cidade tinha tradição nas artes, metalurgia e comércio.
O reinado do príncipe eleitor Augusto (foto ao lado), de 1553 a 1586, por exemplo, pode ser considerado um momento de grande desenvolvimento da técnica de fabricação de instrumentos científicos na Alemanha, inclusive relógios. E os “artesãos”, conforme ressaltado, tinham proteção real. A importância dessas pessoas pode ser verificada em um carta remetida pela princesa eleitora Anna, esposa de Augusto, quando o relojoeiro da corte, Hans Göbe, faleceu. A correspondência, remetida à condessa Hohenlohe, dizia que “aquele relojoeiro que nos enviou faleceu há alguns dias, e meu amado esposo ficou terrivelmente infeliz com a perda, porque ele passou a vida fabricando todos os tipos de instrumentos e coisas encantadoras que eram realmente úteis. Como ele manteve durante sua vida os instrumentos e relógios que agora possuímos, precisamos de outro talentoso, leal e diligente relojoeiro, que ainda não seja casado e, já que é mais fácil encontrar alguém no interior do que na cidade, você poderia indicar alguém”.
Dresden, no entanto, ainda era considerada uma cidade de importância mediana na Alemanha e, principalmente, Europa. Em breve, porém, um novo príncipe eleitor alteraria os rumos da cidade.
Entre 1687 e 1689, Frederico Augusto (foto ao lado) viajou através da Itália e França e, ao conhecer Versalhes, ficou impressionado com seu esplendor. Quando assumiu o trono saxão, em 1694, com apenas 23 anos de idade, estava determinado a transformar Dresden em referência cultural e arquitetônica. Para isso, Frederico Augusto precisava de um reino maior.
Alguns anos antes, o pai de Frederico Augusto, o príncipe eleitor George, havia se aliado ao rei polonês João III Sobieski e derrotado os exércitos turcos que cercavam Viena. Em 1696, Sobieski estava prestes a morrer e, como o reino não seguia a sucessão hereditária, mas eletiva, Frederico Augusto resolveu entrar no páreo.
Quando Sobieski morreu, em 1697, os nobres que escolheriam o novo rei polonês já haviam decidido que o príncipe francês de Conti seria o sucessor. Frederico Augusto, no entanto, possuía várias alianças poderosas, inclusive com o imperador Leopoldo, da Áustria, e o czar Pedro, o Grande, da Rússia. Augusto também estava decidido a subornar os nobres para que o resultado da eleição fosse favorável.
Apesar de todo o caos criado por Frederico Augusto nas eleições, ele não foi o vencedor. Augusto, porém, marchou com suas tropas para Varsóvia. Para ser coroado rei, porém, Frederico Augusto precisava abandonar sua fé protestante e passar a ser católico, uma exigência polonesa.
Assim, após tornar-se católico, Frederico Augusto foi coroado como rei Augusto II da Polônia.
Nas palavras de Frederick Taylor, “ao mesmo tempo que esse pode não ter sido o melhor momento da Polônia ou o mais fácil da Saxônia (Augusto a explora para investir militarmente – e isso antes de começar a gastar com amantes, acomodações para caçadas e coleções de coisas realmente finas), certamente foi auspicioso para os artesãos, mercadores, artistas e negociadores de influência de Dresden, a privilegiada cidade real saxã, ou Residenzstadt. Porque, se vai ser um monarca europeu, Augusto precisa de uma capital que transmita a correta impressão, e ele precisa a curto prazo e está determinado a gastar o que for necessário para tanto”.
Em 1710, Augusto, “o Forte”, determinou a construção de um palácio no centro da cidade, o Zwinger, que abrigaria um salão de instrumentos científicos, galeria de arte, teatro e ópera. A igreja católica da corte também foi iniciada, muito embora sua construção só tenha terminado após a morte de Augusto.
Em 1722, através de financiamento privado, a maior igreja protestante já vista começou a ser construída em Dresden, a Frauenkirche (Igreja de Nossa Senhora). Apesar de Augusto ter-se convertido ao catolicismo, viu o projeto com bons olhos. Ele apenas estava interessado em como a igreja contribuiria para o padrão arquitetônico que buscava para a cidade. A grandiosidade do projeto, pensou Augusto, certamente distinguiria Dresden das demais capitais europeias (foto ao lado – Dresden em 1890).
O interesse de Augusto, “o Forte”, pelas artes também se refletiu na relojoaria, em virtude da necessidade da corte por objetos de luxo. Vários relógios, então, foram importados de Paris e Londres.
Mesmo após a morte de Augusto e a sucessão no trono, Dresden continuou conhecida como uma das capitais europeias mais refinadas.
Em 1756, no entanto, Frederico II, da Prússia, invadiu a Saxônia e ocupou Dresden. Iniciava aí a Guerra dos Sete anos, conflito que alteraria substancialmente a divisão de poderes no mundo. Augusto III, filho de Augusto, “o Forte”, cedeu seu exército de 18 mil homens a Frederico, em troca de livre passagem para seu outro reino, a Polônia. Todas as riquezas minerais e agrícolas da Saxônia foram utilizadas no esforço de guerra prussiano.
Em 1759, porém, os austríacos, aliados dos saxões, conseguiram retomar Dresden, que foi sitiada pelos prussianos. No ataque que aconteceu no ano seguinte, metade da cidade foi incendiada por bombas lançadas pelo exército prussiano. A grandiosa igreja Frauenkirche resistiu aos projéteis, que ricocheteavam em sua abóbada feita de pedras.
Quando a guerra terminou, em 1763, a Saxônia estava empobrecida. Goethe, o maior escritor alemão, visitou sua capital e disse: “Dresden não mais existe por completo. Os melhores e mais bonitos locais foram reduzidos a cinzas. Os grandes palácios e ruas, onde arte e pompa competiam pela primazia, são montes de pedras…Os cidadãos mais abastados ficaram pobres, porque o pouco que foi poupado pelas chamas acabou sendo levado por ladrões…Quem quer que tenha visto esta Residência antes, em toda sua beleza e glória, e a olha agora precisaria não ter coração para não se comover ao extremo por suas miseráveis condições e não derramar lágrimas de piedade”.
O declínio da relojoaria de Dresden ocorreu justamente após a Guerra dos Sete Anos, em virtude do empobrecimento geral da população, que não tinha mais dinheiro para comprar bens que não fossem de primeira necessidade. A corporação de ofícios de relojoeiros de Dresden, por sua vez, não foi perspicaz o suficiente para perceber o desenvolvimento dos franceses e ingleses na área, que em pouco tempo estavam fabricando melhores relógios.
Algumas décadas depois, no entanto, Dresden foi reconstruída. Vários artistas se mudaram para a cidade, como Schumann, Wagner e Ibsen. As alterações arquitetônicas continuaram através das obras de Gottfried Semper. Dresden tornou-se conhecida como a “Florença do Elba”.
Em 1870 tudo estava prestes a mudar. O sentimento antiprussiano era generalizado na Europa e, mesmo assim, o parlamento Espanhol ofereceu o trono vago do país a um parente distante do rei da Prússia. Isso ocasionou grande descontentamento entre os franceses, que proferiram discursos contra a Prússia.
Era o pretexto que Otto Von Bismarck (foto ao lado), chanceler da Prússia, necessitava para iniciar uma guerra. Bismarck sabia que a França impunha restrições à unificação da Alemanha. Sabia também que seus exércitos eram superiores e podiam alcançar a vitória.
O rei Guilherme I, da Prússia, não queria a guerra. Remeteu à França um telegrama (“telegrama de Ems”) buscando um fim à crise. Naquela que pode ser considerada a maior falsificação da história, Bismarck alterou seu conteúdo e omitiu as frases de conciliação, levando a França a sentir-se insultada.
Prússia e França, assim, entraram em guerra. Como previsto, a Prússia ganhou em todas as frentes, sobretudo pelo exército mais bem organizado, avançados armamentos criados pela famosa Krupp e o brilhante comando do marechal Helmuth von Moltke.
Em 18 de janeiro de 1871, em Versalhes, França, os representantes alemães consagraram o Rei Guilherme da Prússia como seu imperador.
Alguns anos mais tarde, a corrida armamentista entre a nova Alemanha e Inglaterra, o revanchismo francês, o nacionalismo exacerbado e o militarismo existente nos países europeus, levou todo o planeta a um conflito nunca antes visto, a Primeira Guerra Mundial.
Com o fim da guerra, a Alemanha entrou em um atoleiro econômico. O sentimento nacionalista ressurgiu na doutrina do “apunhalamento pelas costas”: os alemães não se viam como perdedores da guerra e sentiam-se traídos. Imaginavam, também, que as imposições do Tratado de Versalhes lhes eram bastante desfavoráveis.
Tudo isso se tornou terreno fértil para o crescimento do nazismo.
Conforme Gertaud Freundel narrou, citado por Frederick Taylor, “Hitler trouxe esperança…Meu pai tinha uma loja, ele era fornecedor de bicicletas, gramofones, tudo isso. As coisas ficaram tão ruins que ele teve que fechá-la. Ele costumava me levar ao jardim de infância e havia outro homem lá que também estava desempregado. Meu pai era o tipo de homem otimista, mas o outro disse: veja, com 33 anos, nós jamais vamos arrumar outro emprego na vida”.
Feridas abertas são de difícil cicatrização…Passados pouco mais de 20 anos do fim da primeira guerra mundial, outra aconteceu, em proporções muito maiores.
A relojoaria de precisão em Dresden
A relojoaria de precisão na Saxônia começou após a inauguração do “Salão de Matemática e Física”, situado no Zwinger, ainda no ano de 1728.
Seu primeiro curador, Johann Gottfried Köler (1745 – 1800), fabricou nas suas dependências um regulador astronômico de precisão. Seu sucessor, Johann Heinrich Seyffert (1751 – 1818), ficou tão impressionado com os cronômetros inventados por Thomas Mudge e Josiah Emery que resolveu fabricá-los na Saxônia. Depois da morte de Seyffert, Johann Christian Friedich Gutkaes (1785 – 1845) assumiu o controle do “Salão de Matemática e Física” e também passou a fabricar cronômetros.
Apesar de a Saxônia não ser uma potência naval, a determinação precisa da longitude era necessária, com o fim de mapeamento terrestre, assim como o estabelecimento da hora legal. Aliás, a função principal do “Salão de Matemática e Física” era a determinação astronômica da “hora certa”, com o fim de ajustar os demais relógios localizados no Zwinger. Apenas um ano depois de sua introdução, a hora obtida através das observações astronômicas no local se tornaram oficiais para todos os palácios reais e prédios públicos.
A partir de 1828, o horário para toda a Saxônia, inclusive das ferrovias, passou a ser determinado pelas observações feitas no Zwinger.
De Dresden para Glashütte
Glashütte é uma pequena cidade de aproximadamente 4000 habitantes localizada nas Montanhas do Minério (“Erzgebirge”), Saxônia, aproximadamente a 30 km de Dresden. Até a idade média, a região era dominada pela Floresta Negra mas, no século XV, quando depósitos de prata foram descobertos na região, assentamentos surgiram no local. Em virtude da localização favorável e atividade de mineração, Glashütte foi oficialmente reconhecida ainda no ano de 1506.
O nome da cidade surgiu do processo de fundição da prata em barracas conhecidas como Glazes Hütten, ou Glashütte. A mineração era atividade imprescindível para os príncipes eleitores da Saxônia, que dela dependiam para o desenvolvimento econômico das suas cortes, inclusive o incentivo às artes e fabricação de instrumentos de precisão.
Ainda no século XVIII, no entanto, as jazidas minerais começaram a empobrecer. Prússia e Áustria, ademais, utilizaram toda a região como campo de batalha e a população também foi reduzida por uma sucessão de epidemias.
Os mineiros, buscando algum modo de sobreviver às circunstâncias adversas, passaram a praticar agricultura, fabricação de renda e artesanato em madeira. O governo saxão, em 1843, buscava meios de acabar com a pobreza da região.
Dois anos antes, o aprendiz de Johann Friedrich Gutkaes (relojoeiro real à frente do “Salão de Matemática e Física”), Ferdinand Adolph Lange, havia retornado à Saxônia após trabalhar na Suíça e França. Ele tinha ficado muito impressionado com o sistema de divisão de trabalho praticado na Suíça e sabia que podia ajudar.
Lange (foto ao lado), então, apresentou um detalhado plano às autoridades, com o intuito de estabelecer na região de Glashütte um sistema de produção de relógios nos moldes suíços, para que a população pobre pudesse alcançar “prosperidade e sustento”. Lange inclusive remeteu correspondências às autoridades pedindo adiantamento de fundos para o projeto. Em uma delas asseverou:
“Na esperança que nosso paternal governo não queira negar seu caridoso apoio e atenção para esses planos; o assunto é importante – é o modesto início de um ramo da indústria que vai promover desenvolvimento e prosperidade para uma região que, de forma única, emprega mais de 8.000 pessoas no cantão suíço de Neuchâtel – é uma semente de esperança para toda uma região”.
Após negociações com o governo, Lange concordou em treinar 15 relojoeiros em 3 anos. O governo lhe concedeu 6700 thalers (a moeda da Saxônia), sendo 1120 para aquisição de ferramentas. Os aprendizes deveriam trabalhar para Lange por 5 anos após seu aprendizado. Posteriormente, cada aprendiz fundaria sua própria firma, trazendo desenvolvimento para a região.
Lange mudou-se para Glashütte em 1845 e, no dia 08 de dezembro, começou a treinar os aprendizes, na companhia de Adolf Schneider, seu antigo aluno.
O sistema que Lange passou a implementar, chamado verlagsystem, nada mais era do que o établissage suíço: fabricantes independentes e especializados trabalhavam em suas próprias oficinas e casas para suprir as demandas do produtor dos relógios, criando mútua dependência entre ambos. Entre 15 a 18 especialistas eram necessários para a fabricação de um relógio, sendo que a montagem, ajuste e acabamento eram feitos por cada firma, por conta própria.
Não é de se estranhar que, na época, todos os relógios, ainda que de fabricantes diferentes, guardassem semelhanças entre si. Os ébauches usados eram normalmente os mesmos, variando apenas o padrão de acabamento e detalhes de uma marca para outra.
Na época que Lange realizava seu aprendizado, conheceu Carl Moritz Grossmann, de quem permaneceu amigo por toda a vida. Após concluir seu aprendizado, em 1847, Grossmann trabalhou com os fabricantes de cronômetros Jansen e Krille de Hamburgo; depois, foi para Munique e La-Chaux-de-Fonds, onde trabalhou em uma fábrica de relógios.
Em 1854, Grossmann mudou-se para Glashütte, reencontrando-se com Lange. Tornou-se bastante conhecido não apenas pela fabricação de excelentes relógios, mas cronômetros e instrumentos de precisão. Aliás, tanto Lange quanto Grossmann produziram excelentes cronômetros, com um sistema aperfeiçoado de escapamento de detenção por pivô. Glashütte se tornou, em pouco tempo, referência mundial na fabricação de relógios de precisão.
Grossmann, preocupado em difundir a tradição de Glashutte para o as futuras gerações, apresentou a idéia da criação de uma escola, durante o primeiro encontro de relojoeiros alemães, ocorrido em Bad Harzburg, em 1877. Graças a Grossmann, a escola de relojoaria (foto ao lado) foi fundada, no ano de 1878, com o intuito de ensinar aos futuros relojoeiros não apenas os segredos da arte, mas línguas estrangeiras (inglês e francês), esportes e matemática. Sob a tutela de instrutores como, por exemplo, Alfred Helwig, o inventor do “flying tourbillon”, e Ludwig Strasser, os alunos eram levados ao limite, tornando-se especialistas na fabricação de peças de altíssima qualidade.
A situação permaneceu bastante favorável até o fim da Primeira Guerra Mundial. Os fabricantes de Glashütte, porém, não perceberam a alteração da moda, dos relógios de bolso para os de pulso. A crise econômica após a guerra – que inclusive afetou os suíços, que formaram vários trustes e extinguiram várias fábricas – causou a falência de diversas manufaturas alemãs. Glashütte conseguiu sobreviver com a fabricação de relógios militares, para observatório e pesquisa. O governo da Saxônia também providenciou ajuda financeira. Em 1926, por exemplo, o banco central da Saxônia, GiroZenrale, criou a Uhren-Rohwerke-Fabrique Glashütte (Urofa) e a Uhrenfabrik Glashütte (Ufag). O calibre 58, desenvolvido pela Urofa, por exemplo, alcançou grande sucesso, tendo sido fabricados mais de 350.000 entre 1934 e 1945. A partir de 1935, a A. Lange & Söhne passou a fazer relógios para os militares, alcançando grande sucesso com o modelo para pilotos com calibre 48.1.
Terça-feira, 13 de fevereiro de 1945
Entre os dias 13 e 15 de fevereiro de 1945, uma força conjunta da USAF e RAF de 3600 aviões bombardeou a cidade de Dresden, lançando quase 4000 toneladas de explosivos, em sua maioria bombas incendiárias. Um morador narrou:
“Dresden inteira era um inferno! Na rua, as pessoas vagavam, impotentes. Vi minha tia. Ela havia se embrulhado com um cobertor molhado e, ao me ver, gritou: “Vá para o terraço no Elba!” O som da tempestade de fogo crescente engoliu suas últimas palavras. A parede de uma casa ruiu com grande estrondo, enterrando várias pessoas. Uma grossa nuvem de poeira subiu e, combinada à fumaça, tornou a visão impossível. Então, uma mão me agarrou pelo pescoço e me puxou para longe dos destroços. Era o jovem piloto, que com toda tranquilidade, provavelmente salvou minha vida no meio desse caos. A gente não parava de tropeçar em cadáveres…”
Conforme narrado pelo historiador Frederick Taylor, o príncipe Ernst Heinrich da Saxônia assistiu à destruição da capital construída pelos seus antepassados.
“A cidade inteira era um mar de chamas. Isso era o fim! A gloriosa Dresden ardia, a nossa Florença do Elba, na qual minha família residira por quase quatrocentos anos. A arte, a tradição e a beleza de séculos haviam sido destruídas em uma única noite! Fiquei ali como se tivesse sido transformado em pedra”.
Estima-se que 90% do centro da cidade foi destruído (foto ao lado) e 30 mil pessoas morreram no ataque que, depois, tornou-se uma das maiores controvérsias da Segunda Guerra Mundial, sobretudo pelas declarações dadas pelos aliados.
O coronel Grierson, do escritório de imprensa da RAF, por exemplo, afirmou após os ataques que estes haviam ocorrido para tentar destruir o que “restava do moral alemão”. Teria sido o ataque a Dresden realmente necessário? Alguns estudiosos dizem que não, pois a cidade era apenas um local para refugiados, sem qualquer alvo militar na parte central; outros dizem que sim, pois lá estavam várias fábricas de munições e os russos, que já avançavam pelo leste, precisavam ser impedidos.
De qualquer forma, no dia 08 de maio de 1945, o Exército Vermelho marchou pela cidade destruída. Como se não bastasse, bombardeou a pequena cidade de Glashütte, sem qualquer motivo aparente.
As fábricas de relógios de Glashütte, então, foram fechadas e seus equipamentos enviados à União Soviética. Dresden e Glashütte passaram a integrar a “cortina de ferro” da Alemanha oriental.
Em 1951, as seis companhias restantes em Glashütte (A. Lange & Sohne, Urofa e Ufag, Gössel & Co, R. Mühle & Sohn, Felix Estler e Liwos) se tornaram uma empresa estatal, a VEB Glashütter Uhrenbetriebe (GUB). Sob o regime socialista, 2000 empregados passaram a fabricar aproximadamente um milhão de relógios por ano, voltados para o público em geral, algo muito distante da relojoaria de precisão que era a marca de Glashütte há décadas.
Isso não quer dizer, porém, que não tenham ocorrido avanços. Mesmo na época de ouro de Glashütte, as fábricas importavam componentes da Suíça, sobretudo os críticos, como as molas de balanço. Como o comércio entre a Alemanha oriental e Suíça foi impedido após a Segunda Guerra Mundial, o Instituto de Metalurgia de Dresden desenvolveu ligas metálicas específicas para fabricação de molas, algo que nunca havia sido feito. Também foram criados rubis e molas principais.
Alguns modelos foram exportados, como o GUB Spezimatic, que possuía boa qualidade e precisão. Até 1978, aproximadamente 3.6 milhões foram produzidos. No entanto, os relógios feitos na República Democrática Alemã não eram luxuosos, mas apenas instrumentos honestos e funcionais.
Epílogo
Durante os ataques de 1945, o famoso palácio Zwinger foi destruído, assim como o Taschenberg, a igreja Hofkirche e a Semperoper. A imponente igreja Frauenkirche resistiu aos ataques iniciais: parecia que as bombas haviam ricocheteado no seu domo, como no cerco prussiano em 1760.
O calor dos incêndios na cidade, porém, abalou suas estruturas. Às 10h15 da manhã do dia 15 de fevereiro de 1945, a igreja com quase 90 metros de altura ruiu no Neumarkt (foto ao lado).
Nos anos seguintes, o Partido Comunista sabotou todas as tentativas da população para reconstruir a igreja. Foi decidido, em 1966, que as ruínas permaneceriam no local como um aviso às futuras gerações sobre a crueldade e violência da guerra.
Com o colapso do regime soviético, os dresdenses resolveram reconstruir a famosa igreja. A restauração começou em 1993 e perdurou até 2005, com um custo aproximado de 200 milhões de euros, obtidos principalmente através de doações. A cruz colocada no pináculo foi paga por um fundo criado em Londres e fabricada por um ferreiro cujo pai – piloto da RAF – havia participado dos ataques a Dresden. Um verdadeiro símbolo de reconciliação. Na cerimônia de inauguração, transmitida pela tv para milhões de pessoas, o presidente alemão, Horst Köhler, asseverou:
“Todos que esqueceram como chorar irão reaprender com a destruição de Dresden. Todos que perderam a confiança irão recuperá-la ao ver a recriada Frauenkirche”.
No dia 16 de outubro de 1990, a única empresa que ainda possuía descendência direta com as glórias do passado relojoeiro de Dresden, a GUB, foi privatizada e transformou-se na Glashütter Uhrenbetrieb GmbH (Glashütte Original). No dia 07 de dezembro de 1990, 145 anos após Ferdinand Adolph Lange ter aberto sua fábrica em Glashütte, seu bisneto, Walter Lange, registrou a nova Lange Uhren GmbH (Lange & Söhne). Outras fábricas surgiram, como a Nomos Glashütte/SA Roland Schewertner (Nomos – 1990), Nautische Instruments Mühle – Glahütte GmbH (Mühle – 1994), Union Uhrenfabrik GmbH (Union – 1996), etc.
Assim como Dresden, a cidade que ressurgiu das cinzas, a relojoaria alemã tradicional e de precisão voltou a ser praticada em Glashütte. A antiga escola de relojoaria, batizada com o nome de Alfred Helwig, voltou a admitir estudantes (15 por ano) para cursos com 3 anos de duração, incentivando jovens a seguir a carreira tão tradicional.
Caminho através das ruas de Dresden. Observo a belíssima Semperoper. Sigo através dos jardins do Zwinger. O Salão de Matemática e Física está fechado para reformas. Aliás, essa é a tônica da cidade: reconstrução. Acompanho o mural feito em porcelana de Meissen, Fürstenzug, que descreve toda a dinastia de príncipes da Saxônia. Chego na praça central e observo a Frauenkirche. Vejo diversos turistas, sobretudo alemães, admirando em silêncio a construção. Não consigo culpá-los pelas grandes atrocidades ocorridas no século XX…Estariam eles buscando a redenção? Olho novamente a majestosa igreja reconstruída e penso: “para que nunca nos esqueçamos”.
Bibliografia
– Die Dresdner Frauenkirche, de Matthias Gretzschel/Ellert e Richter Verlag;
– Journey Through Time, Exhibition Guidebook, German Watch Museum Glashütte;
– Dresden, de Frederick Taylor;
– The History of Watches, de David Thompson;
– Wristwatches, de Gisbert L. Brunner e Christian Pfeiffer – Belli;
– Measuring the Moment – How Precise Time Came to Glashütte, de Herbert Dittrich;
– The Art of Precision – The Roots of Precision Watchmaking in Saxony, de Herbert Dittrich;
– Inventors and Visionaries – The Pioneers of Precision Watchmaking in Dresden and Glashütte, de Herbert Dittrich;
– The Beginning of a Tradition – The first 50 Years of Precision Watchmaking in Glashütte from 1845 to 1895, de Herbert Dittrich;
– Revolution in Time – Clocks and the Making of the Modern World, de David Landes.
Créditos
Fotografia de Bismarck e Frauenkirche destruída por Bundesarchiv; Escola de Relojoaria Alemã por Foundation of Haute Horlogerie; Dresden destruída por Deutsche Fotothek; todas as demais por Wikipedia.
Links selecionados
Museu de Relojoaria Alemã em Glashütte. O museu situa-se na cidade de Glashütte, aproximadamente a 30 km de Dresden. Mediante agendamento no site oficial, é possível visita guiada.
Glashütte Original – agendamento de visita. A concepção da manufatura permite a visualização completa do processo de fabricação dos relógios.
Agradecimentos
Agradeço à minha mãe, que com agilidade de pensamento e insistência, afastou todos os empecílhos para a realização da viagem; ao meu irmão Marcelo que, muito embora não seja um entusiasta da relojoaria, acompanhou-me até Glashütte, na distante Saxônia, para que vivenciássemos a cultura local; ao meu pai, que introjetou em minha mente o gosto pela história dos grandes conflitos mundiais; aos jovens relojoeiros da manufatura Glashütte Original, que mesmo refletindo expressões da modernidade, como o uso de piercings, tatuagens etc, resolveram seguir uma profissão muito tradicional; finalmente, agradeço do fundo do meu coração a René Marx e Michael Hammer, relações públicas da Glashütte Original, talvez os profissionais mais bem preparados e educados que já conheci em minha vida.