Relógios Mecânicos
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Artigo | Curiosidades

O cerco ao relojoeiro independente: como Rolex e outros gigantes mudaram as regras do jogo

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Flávio Maia, Julho de 2025.

Houve um tempo em que o relógio mecânico não era artigo de luxo, mas apenas um recurso funcional, presente no pulso ou no bolso de todos, servindo para organizar compromissos e manter o ritmo do trabalho cotidiano.

Esse mundo produziu uma estrutura robusta de serviços de manutenção. O relojoeiro de bairro era figura tão comum quanto o sapateiro ou o alfaiate. E o curioso é que, mesmo em cidades pequenas, esse profissional tinha plena autonomia para reparar qualquer relógio, fosse um simples Roskopf ou um cronógrafo Longines.

Como isso era possível? O segredo estava na disponibilidade de peças de reposição. Existiam as chamadas fornituras, verdadeiros distribuidores universais que, recebendo catálogos das manufaturas, mantinham estoques imensos. Bastava o relojoeiro informar o número da peça, e a engrenagem, o pinhão ou o mostrador original chegava em poucos dias, não importando se o relógio era um Zenith, um Omega ou mesmo um Rolex.

Simultaneamente, sempre houve as redes autorizadas. Marcas maiores mantinham oficinas próprias ou credenciadas, o que garantia um certo padrão, mas isso não impedia que o relojoeiro independente comprasse a mesma peça original e realizasse o serviço com o mesmo cuidado. Era, portanto, um mercado plural: o consumidor decidia se levaria seu relógio ao relojoeiro da esquina, muitas vezes o mesmo que lhe vendera o relógio anos antes, ou então ao representante oficial.

Por mais romântico que soe, esse modelo vigorou não apenas na primeira metade do século XX, mas até boa parte dos anos de 1990.

O início do fechamento: a Rolex muda as regras

Mas esse panorama mudou drasticamente. A grande virada se iniciou de forma silenciosa, arquitetada pela Rolex, ainda no final dos anos 1990. Com o argumento oficial de “preservar a integridade técnica e estética do produto” e de “proteger o consumidor contra falsificações”, a marca passou a manter o fornecimento de peças originais apenas a oficinas autorizadas, submetidas a auditorias exaustivas, treinamento e compra de equipamentos específicos.

Era o nascimento do modelo de cadeia vertical controlada, que depois se espalharia pelo restante da indústria suíça. Não demorou para o Swatch Group (Omega, Longines, Tissot, Blancpain) implantar a mesma política. Entre 2002 e 2008, o grupo de Hayek anunciou que só venderia peças para centros que aderissem a rígidos contratos, com certificação periódica e compra mínima de máquinas. Richemont (Cartier, IWC, Panerai) veio em seguida, consolidando o cerco.

Em pouco mais de duas décadas, o que antes era um mercado aberto, plural e descentralizado, onde qualquer relojoeiro competente podia obter peças originais, tornou-se um sistema quase feudal, em que só poucos centros autorizados detêm o privilégio de acessar as peças para reparo.

O resultado foi o desaparecimento de várias oficinas independentes ao redor do mundo. Muitos profissionais com décadas de experiência simplesmente não podiam mais consertar relógios das grandes marcas por falta de peças genuínas. Isso não tem nada a ver com a qualidade técnica dos profissionais: muitas oficinas independentes, inclusive, têm equipamentos e formação superiores a pequenas lojas autorizadas. Mas a questão deixou de ser técnica e virou política comercial.

O caso Cousins x Swatch e o muro suíço

Esse estrangulamento não passou incólume. Na Europa, algumas entidades tentaram reagir. O caso mais notório foi o da Cousins Watch & Clock Ltd, capitaneada por Anthony Cousins, uma das maiores distribuidoras de peças do Reino Unido, que travou verdadeira guerra contra o Swatch Group. O argumento era cristalino: ao interromper o fornecimento de peças para distribuidores independentes, o grupo estaria abusando de posição dominante, eliminando a concorrência no mercado de serviços.

A disputa começou no Reino Unido, mas, por uma manobra jurídica realizada pelo Swatch Group, o foro foi deslocado para a Suíça. E como seria de se esperar, o sistema jurídico suíço, profundamente ligado à própria relojoaria, acabou sepultando a causa sem julgamento do mérito, deixando milhares de relojoeiros britânicos e europeus à mercê do cartel suíço.

A frustração do setor foi tamanha que até hoje o site da Cousins mantém editoriais ácidos contra a indústria, mostrando como as práticas do Swatch e da Rolex desarticulam o mercado e empurram o consumidor a pagar valores exorbitantes em revisões.

Dan Spitz, Nicholas Hacko e outros heróis improváveis

Não foi apenas a Cousins que enfrentou as empresas. Casos curiosos apareceram em outros cantos do mundo.

Um dos mais emblemáticos é o de Dan Spitz, ex-guitarrista do Anthrax e hoje mestre relojoeiro pelo WOSTEP, que, após décadas como técnico certificado por diversas empresas, ficou sem poder comprar peças. A solução dele foi extrema: decidiu fabricar seu próprio relógio, do zero, incluindo as microferramentas, para provar que podia continuar no ofício sem o auxílio das casas suíças.

Outro nome relevante é o do relojoeiro australiano Nicholas Hacko, que, impossibilitado de obter componentes originais após anos trabalhando com marcas suíças, lançou o ambicioso projeto de fabricar relógios inteiramente produzidos na Austrália, até mesmo com suas próprias engrenagens e pontes. Foi ele também o criador da campanha Freedom to Make – Right to Repair”, defendendo o direito de fabricantes independentes e relojoeiros repararem relógios sem o cerco das grandes marcas.

Essas histórias mostram a mesma raiz: o bloqueio da cadeia de fornecimento, que força relojoeiros independentes a migrar do reparo tradicional para aventuras industriais ou à simples falência.

O caso brasileiro que tive acesso: Rolex e o mostrador “não original”

Recentemente, tomei conhecimento de um caso no Brasil que ilustra perfeitamente a situação. Sem revelar nomes ou detalhes que permitam identificar as partes — por respeito à privacidade e aos trâmites processuais — trata-se de um consumidor que enviou seu relógio para revisão no centro de serviços oficial da Rolex.

O relógio apresentava um mostrador que, segundo a Rolex, não seria original, embora todos os outros componentes fossem. O consumidor não pediu nada extravagante: apenas que fosse restaurada a originalidade do relógio, trocando o mostrador por um genuíno e realizada uma revisão completa, obviamente mediante pagamento.

A resposta da Rolex foi a negação integral do serviço, alegando que, por políticas internas, não poderiam tocar em relógios que contivessem peças não originais. Ou seja: nem mesmo para substituir a peça não original por uma original, a Rolex se dispôs a ajudar. A contestação judicial da empresa no processo é reveladora: invoca uma série de argumentos que, embora soem “bonitos” e convincentes ao leigo, são frágeis quando confrontados com a legislação brasileira.

No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor é claro: o fabricante tem o dever de fornecer peças durante a vida útil do produto (art. 32), e recusar vender ou prestar serviços mediante pagamento configura prática abusiva (art. 39, incisos II e IX). Não há no ordenamento jurídico brasileiro qualquer base para a Rolex simplesmente recusar-se a restaurar o relógio à sua condição original, especialmente quando o consumidor está disposto a arcar com os custos.

Esse modelo restrito de fornecimento de peças pode até fazer sentido para proteger a reputação da marca na cabeça dos seus executivos, mas tem impactos profundos na realidade do consumidor. Há, antes de tudo, uma redução drástica da concorrência: o consumidor fica praticamente sem escolha — ou recorre a um centro autorizado, pagando valores muitas vezes proibitivos e aceitando prazos longos, ou simplesmente não conserta. Soma-se a isso o desaparecimento dos pequenos relojoeiros, mestres artesãos que por gerações cuidaram dos relógios e agora estão sendo alijados do mercado, não por incompetência, mas por políticas comerciais de conglomerados suíços. E, por fim, há o encarecimento geral dos serviços: sem concorrência real, o custo médio das revisões e reparos dispara, prejudicando especialmente quem tem relógios antigos, mas que não são de altíssimo valor comercial, e sim meros patrimônios afetivos.

Fica para nós, entusiastas e estudiosos da relojoaria, a tarefa de manter viva a memória de como a arte de consertar relógios já foi livre, plural e competitiva. E de lutar, na medida do possível, para que o consumidor não perca de vez o direito de escolher quem deve cuidar de bens tão preciosos.