Robert Hooke, Christiaan Huygens e a invenção da espiral
por Flávio Maia
Desde a invenção do relógio mecânico, em meados do século XIII, até aproximadamente quatrocentos anos depois, esse pouco evoluiu, consistindo em um conjunto de engrenagens móveis acopladas a um escapamento de coluna e foliot. O foliot controlava o ritmo do bloqueio e desbloqueio das engrenagens, mas não funcionava satisfatoriamente, fazendo com que os relógios variassem até trinta minutos ao dia.
Tudo isto mudou em 1656, quando o matemático e astrônomo holandês Christiaan Huygens, trabalhando em conjunto com o relojoeiro Salomon Coster, removeu o foliot e o substituiu por um pêndulo. O ganho de precisão foi fantástico: o primeiro relógio de pêndulo de Huygens variava apenas um minuto ao dia e, com refinamentos, alcançou dez segundos.
O pêndulo, no entanto, não podia ser colocado em relógios portáteis. Algo deveria ser adaptado a tais relógios para que tivessem um funcionamento preciso e constante.
No dia 20 de janeiro de 1674, Huygens escreveu no seu diário: “Eureka! Eu descobri!” Ao lado desenhou uma mola em formato de espiral fixada ao balanço – o foliot de um relógio portátil –, com o intuito de controlar de forma satisfatória as suas oscilações.
A invenção, chamada “espiral” (ou “cabelo”, em virtude da diminuta espessura da mola), colocou Huygens em rota de colisão com um dos maiores cientistas da época: Robert Hooke.
Hooke nasceu em uma família humilde de Freshwater, na Ilha de Wight, em 1635. Sua saúde frágil não diminuiu seu gosto pela observação da natureza, pintura e aparatos mecânicos. Ainda criança desmontou um relógio de madeira e conseguiu fazer uma cópia. Seu pai inclusive imaginou que no futuro ele pudesse seguir carreira como relojoeiro.
Após a morte de seu pai, Hooke recebeu uma pequena herança que permitiu-lhe viajar a Londres e tornar-se aprendiz do pintor Sir Peter Leiy, o que não durou muito, em virtude das fortes dores de cabeça causadas pela tinta a óleo.
Logo após, Hooke ingressou na prestigiosa escola de Westminster, onde estudaram Christopher Wren, John Locke e Jeremy Bentham, tendo aprimorado seus estudos em mecânica.
Aos dezoito anos de idade resolveu ingressar em Oxford e, com o intuito de custear seus estudos, passou a trabalhar como assistente do cientista Robert Boyle, que estudava o comportamento dos gases. Hooke, então, construiu a bomba de ar utilizada por Boyle em seus experimentos, que posteriormente levaram-no a formular a lei física que relaciona a pressão e o volume dos gases. Sua estadia em Oxford e seu núcleo de amizades, composto por John Wilkins, Christopher Wren e Boyle, lançaram a pedra fundamental da Royal Society, que foi fundada em 1660, com o intuito de difundir estudos científicos.
Hooke, então, foi apontado como Curador de Experiências da Royal Society, responsável por demonstrar fenômenos físicos através de experiências próprias ou sugeridas por membros. Em 1665 publicou a obra Micrographia, que descrevia a construção de um microscópio, além das estruturas de aves e insetos. Nesta obra Hooke lançou o conceito da célula, ao descrever a estrutura constitutiva da cortiça.
O ponto de virada da carreira de Hooke ocorreu após o incêndio de Londres de 1666, que destruiu a maioria das habitações. Hooke foi indicado como agrimensor e assistente chefe de Christopher Wren. Juntos projetaram diversos prédios, inclusive a mais famosa catedral inglesa, a St. Paul´s. A reconstrução da cidade de Londres transformou Hooke em uma pessoa extremamente rica.
Enquanto isso, em Haia, Christiaan Huygens desenvolvia seus estudos. Huygens nascera em família rica e influente. Seu pai era diplomata, tendo entre seus amigos pessoas como Galileu Galilei e Descartes. Recebeu, portanto, a melhor educação possível e foi apresentado à elite intelectual da Europa. Em 1654, Huygens inventou uma melhor forma de polir lentes e construiu um telescópio. Usando suas próprias lentes, Huygens descobriu, em 1655, a primeira lua de Saturno, Titan. Seus estudos sobre a quadratura do círculo, que apontaram erros cometidos por Thomas Hobbes, deram-lhe fama. Foi eleito membro da Royal Society, da qual fazia parte Hooke, em 1663.
Em 01 de agosto de 1665, o primeiro presidente da Royal Society, Robert Moray, remeteu uma carta a Huygens nos seguintes termos:
“Nunca lhe falei sobre outra coisa que ele (Hooke) apresentou nas aulas de mecânica (que ele dá às quartas-feiras fora do período de aulas). É uma invenção totalmente nova, ou antes, vinte invenções, para medir o tempo tão exatamente como nos seus relógios de pêndulo, tanto no mar como em terra, porque, segundo ele, não são perturbadas por mudanças de posição ou de temperatura do ar. Numa palavra, consiste em aplicar uma mola, em vez de um pêndulo, ao balanço, e isto pode ser feito de muitas maneiras; ele chegou a dizer-nos que estava empenhado em provar que é possível ajustar as oscilações (excursions) para obter o isocronismo. Levaria muito tempo a descrever isso em pormenor, e ele diz que irá publicar tudo dentro em breve; entretanto, estou certo de que perceberá uma boa parte do que há a considerar (une bonne partie de ce qu`il y à considerer)”.
Em outra carta, Huygens respondeu o seguinte:
“A respeito da ideia de Mr. Hooke, sobre a qual teve a gentileza de me falar, de aplicar uma mola aos relógios em vez de um pêndulo, eu quero dizer que, quando estive em Paris, em 1660, o duque de Romais (isto é, Roanez) me falou na mesma coisa e me levou ao fabricante de relógios a quem eles tinham comunicado a invenção, mas sob juramento e promessa, perante o notário, de não a revelar nem atribuir. No entanto, achei má a solução que encontraram e pude logo pensar em soluções melhores. Mas, tirando o fato que isto não é tão fácil de fazer com os relógios de pêndulo, não acho que aqueles relógios sejam tão precisos como estes; porque o movimento do barco tende a causar algumas irregularidades de funcionamento que seriam difíceis de corrigir; além disso, ainda não sabemos se as mudanças do calor para o frio não iriam alterar as vibrações. Por isso, eu penso que Mr. Hook fala com exagerada confiança sobre esta invenção da longitude no seu prefácio (a Micrographia), assim como várias outras coisas”.
Fato é que, em 1675, dez anos depois da troca de correspondências com Moray, Huygens escreveu “Eureka” ao lado de um desenho de uma espiral e imediatamente procurou o famoso relojoeiro francês Isaac Thuret para construir um protótipo.
Em uma carta, Huygens descreveu o aparato:
“A invenção consiste de uma mola enrolada em espiral, presa por um lado ao eixo de um balanço equilibrado, que gira em pivôs; e no outro lado a uma peça que é encaixada na platina do relógio. Essa mola, assim que o balanço é colocado em movimento, alternadamente abre e fecha suas espiras e, com uma pequena ajuda que obtém do conjunto de engrenagens do relógio, mantém o movimento do balanço, de modo que, gire este mais ou menos, os tempos das alternâncias são sempre os mesmos”.
Na época ocorriam várias guerras entre os países europeus, sobretudo pelo controle de rotas comerciais, e essas disputas nacionalistas também se refletiam nos cientistas, que eram muito preocupados em assegurar a primazia de suas invenções. E um relógio preciso era a chave para a navegação.
Com o intuito de assegurar uma patente inglesa, Huygens descreveu sua ideia em uma mensagem cifrada e a enviou por carta a Henry Oldenburg, Secretário-Geral da Royal Society em Londres. No dia 18 de fevereiro de 1675, Oldenburg apresentou o projeto aos demais integrantes da Royal Society, e todos ficaram espantados com suas possibilidades, menos o seu Curador de Experiências, Robert Hooke.
Hooke não tinha a compostura dos seus colegas aristocratas e facilmente se enfurecia. Ele era irascível com quem julgava ser seu competidor intelectual, embora fosse amável entre seus amigos. Sobre a espiral de Huygens, ressaltou durante a reunião da Royal Society: “não vale um centavo!”
A rusga entre Hooke e Huygens era antiga. Huygens, é certo, era considerado o pai do relógio de pêndulo. Hooke dizia, desde meados de 1650, porém, que a ideia não era original, e havia sido plagiada de Galileu Galilei. Havia, portanto, iniciado estudos para construir um regulador mais preciso do que o pêndulo, sobretudo através da utilização de molas.
Por volta de 1663, Hooke apresentou secretamente ao presidente da Royal Society, Lorde William Brouncker, um projeto de relógio portátil regulado por mola. Pretendia desenvolver a ideia até conseguir fabricar um relógio que solucionasse o problema da longitude. A ideia, porém, foi abandonada, eis que Hooke se tornou Agrimensor de Londres pouco tempo depois do incêndio que destruiu a cidade, o que exigia dedicação em tempo integral.
Quando a ideia da mola ligada ao balanço foi oficialmente apresentada à Royal Society como sendo de Huygens, Hooke sentiu-se traído. Percebeu, então, que somente conseguiria obter a primazia do invento se o patenteasse na Inglaterra antes de Huygens. Como não confiava mais na Royal Society, decidiu que o único modo de provar que tivera a ideia antes seria a construção de um protótipo. E estava decidido a apresentá-lo diretamente ao Rei Charles (Carlos) II.
Hooke, então, procurou Sir Jonas Moore, Intendente Geral, responsável por todas as compras feitas pela Marinha e com acesso ao rei. Moore, um estadista, acreditava que era melhor que um invento revolucionário fosse atribuído a um inglês. Para fabricar o protótipo, Hooke contratou o eminente relojoeiro inglês Thomas Tompion.
Enquanto isso, na França, Huygens acabou ludibriado por Isaac Thuret, que patentou a invenção como se fosse sua. Mas não só… Com a publicação da patente, outro inventor, Jean de Hautefeuille, alegou ter primazia sobre o invento. Após um acordo com Thuret, que confirmou ser a invenção de Huygens, esse buscou patenteá-la na Inglaterra.
Como na Inglaterra um estrangeiro não era autorizado a requerer patentes, Huygens pediu a Oldenburg que o fizesse, prometendo-lhe dividir os royalties com a Royal Society de Londres, o que foi aceito imediatamente.
No dia 07 de abril de 1675, correndo contra o tempo, Hooke, Tompion e Moore conseguiram uma audiência com o rei Charles II, a quem mostraram um protótipo. Hooke ficou muito entusiasmado ao relatar que o rei havia achado o invento fantástico e, assim, conceder-lhe-ia a patente. A alegria de Hooke durou até o dia seguinte, quando descobriu que Brouncker também havia conversado com o rei, com o intuito de favorecer Huygens. Mas Hooke tinha uma vantagem, pois mostrara ao rei um protótipo, o que não fizera Brouncker.
Hooke, então, conseguiu outra audiência com o rei no dia 17 de maio e apresentou-lhe um novo protótipo, contendo em sua platina a inscrição “R. Hooke invenit 1658, T. Tompion fecit 1675”, certamente para ressaltar sua primazia não só sobre a fabricação como invenção do aparato. O relógio foi deixado com o rei, que resolveu testá-lo pessoalmente.
Somente no dia 21 de junho um relógio foi apresentado por Huygens ao rei e, para tranquilidade de Hooke, não marcava o tempo com precisão.
Hooke, então, ganhou tempo e, no dia 26 de agosto, mostrou um protótipo mas avançado ao rei. O relógio foi testado pessoalmente por Charles II e variou apenas um minuto ao dia, um feito fantástico para a época. Possuía, inclusive, ponteiro de segundos, sendo que o modelo apresentado por Huygens sequer tinha o de minutos.
Em outubro, porém, o temperamento agressivo de Hooke colocou tudo a perder… Ele adicionou um post script a um estudo sobre lentes de telescópio que publicara, sugerindo que Oldenburg – que era alemão e, inclusive, já fora preso em 1667 por suspeita de espionagem – havia ilicitamente transmitido suas teorias a Huygens no passado.
Oldenburg escreveu imediatamente a Huygens dizendo-lhe que sua honra havia sido manchada, pois nunca havia divulgado nenhuma ideia de Hooke antes de se tornarem públicas. Huygens, então, escreveu a Brouncker para que defendesse Oldenburg e a Royal Society fez um comunicado formal denunciando Hooke por falsa acusação. Como resultado, o rei não atribuiu a patente tanto a Huygens quanto Hooke. Huygens, no entanto, tendo o apoio da Royal Society, entrou para a História como inventor da espiral, enquanto a contribuição de Hooke foi esquecida.
Mas Huygens pagou um preço alto pelas disputas a respeito das patentes, tanto na Inglaterra quanto França. Em 1676, sofrendo de depressão severa, resolveu voltar à Holanda e disse:
“Depois de cinco meses de enfermidade, dou a todos os relojoeiros a completa liberdade de trabalhar com a minha invenção, já que tem me custado muito obter o registro da patente no Parlamento, tanto em requerimentos quanto apelações, e eu sei que mesmo depois os processos judiciais e problemas continuarão”.
Huygens continuou seus estudos em Haia e faleceu no dia 08 de julho de 1695. Foi sepultado na famosa igreja protestante Grote Kerk, reconhecido como um dos maiores cientistas europeus de todos os tempos.
Logo após a disputa com Huygens, Hooke iniciou uma intensa troca de correspondência com Isaac Newton. Em uma carta de 06 de janeiro de 1679, discutindo sobre a gravidade, Hooke sugeriu a Newton que supunha que a força de atração entre os corpos era inversamente proporcional ao quadrado das distâncias entre eles, muito embora não tenha provado matematicamente o conceito.
Quando a famosa obra Principia foi publicada, em 1686, Newton comprovou matematicamente a teoria, mas não a atribuiu a Hooke. Indignado, Hooke realizou diversas reclamações, que foram ignoradas por Newton.
Hooke faleceu no dia 03 de março de 1703, sem deixar filhos. Ao lado do seu leito de morte foi encontrado um baú contendo oito mil libras em ouro, o equivalente a milhões de dólares na cotação atual. Como Hooke não tivera filhos, a extraordinária soma foi herdada por uma prima. Foi sepultado na igreja St. Helen´s, em Londres, em cova desconhecida até hoje.
Em 1703, Newton assumiu a presidência da Royal Society e agiu nos bastidores para obscurecer Hooke. Reza a lenda que Newton determinou a destruição dos dois únicos retratos de Hooke, cujos quadros estavam pendurados na Royal Society, e até hoje suas feições são desconhecidas. Newton também privilegiou o trabalho de Wren na reconstrução de Londres após o incêndio de 1666, razão pela qual nenhuma menção é feita a Hooke, por exemplo, no projeto da catedral de St. Paul e outros edifícios.
Hooke, assim, tornou-se uma nota de rodapé de livros de História….
Em 2006, a famosa manufatura suíça Patek Philippe introduziu em seus relógios, de forma pioneira, um material oriundo da era da computação, o silício monocristalino. A peça construída nesse material, uma mola em formato de espiral para controlar as oscilações do balanço, não diferia em formato ou função daquelas projetadas por Hooke e Huygens séculos antes…
Bibliografia
The Joys of Spring, Patek Philippe – The International Magazine, Number Twelve
Balancing Act, Patek Philippe – The International Magazine – Volume II, Number 3
The Battle of the Balance Spring, por Jay Deshpande, WatchTime Magazine, December 2014
A Revolução no Tempo, Os Relógios e o Nascimento do Mundo Moderno, por David Landes
Fotografias por Wikipedia